Homens e meninos também sofrem abuso sexual e demoram a pedir ajuda

Em nossa sociedade, o “normal” é que esse tipo de caso envolva meninas e adolescentes e que os algozes sejam homens.

Luiz Gonzaga Neto

Quando eu era criança, na faixa dos 10 anos, fui vítima de abuso sexual por parte de uma jovem, que morava na vizinhança, em São Paulo. A situação foi estranha para mim e, claro, envolveu algum prazer, contradição numa sociedade repressora. A moça me levou para sua casa e os detalhes se perdem numa lembrança remota, guardada a sete chaves pela confusão/exposição que aquilo me causou. Ainda bem que não se repetiu. Nunca falei do episódio aos meus pais ou dividi a história com colegas da rua. Guardei para mim e, só muito tempo depois, lendo uma matéria sobre abuso sexual de meninos, me dei conta de que fazia parte, mesmo informalmente, dessas ocorrências.
Em nossa sociedade, o “normal” é que esse tipo de caso envolva meninas e adolescentes e que os algozes sejam homens. Por que não mulheres? Em matéria do jornal El País, David Pires começou o texto falando do “silêncio dos homens” e da necessidade de encontrar sentido para ressignificar a experiência traumática. Em Portugal, há uma entidade, a Quebrar o Silêncio, que busca ajudar os homens vítimas dessa violência. Na Inglaterra, existe a Survivors Manchester, grupo que presta suporte psicológico a homens impactados por essas experiências.
Os apoiadores dessas ongs sabem que homens sentem muita vergonha e até sentimento de culpa em relação ao abuso sexual, algo agravado por estereótipos de gênero, como as lendas de que homem tem de resolver seus problemas sozinho. No Brasil, ainda não há instituição de acolhimento específica para homens vítimas de abusos sexuais. Porém, casos de repercussão midiática têm sido expostos a conta-gotas.
O humorista Marcelo Adnet, 39, revelou que havia sido abusado duas vezes na infância. Na primeira, aos 7 anos, por um caseiro do sítio onde passava férias. Depois, aos 11, por um amigo mais velho de sua família. “Foram mais de 25 anos para pensar em tocar nesse assunto publicamente. São várias camadas de dor para lidar”, lembrou Adnet em entrevista ao canal GNT. “Como eu não tive culpa, é uma cicatriz na minha vida, mas hoje não tenho vergonha de falar sobre algo em que eu fui a vítima. Temos de normalizar e encorajar a denúncia. Ser abusado não é crime.”
Relatório de 2019 do Disque 100, canal de denúncias mantido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, indica que somente 18% dos registros de violência sexual contra crianças e adolescentes brasileiros referiam-se a vítimas do sexo masculino. A subnotificação de abusos contra meninos se torna ainda maior na adolescência. Enquanto 46% dos casos atinge vítimas do sexo feminino entre 12 e 17 anos, a proporção de garotos da mesma faixa etária que denunciam é de apenas 9%. Os homens não falam, mas temem que os abusos atrapalhem sua vida sexual futura.
Até 2009, a legislação brasileira não considerava homens como vítimas de estupro. Antes da alteração no Código Penal, que reformou o artigo 213 de “constranger mulher” para “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, o estupro de homens era enquadrado como atentado violento ao pudor, com penas menores. Em que pese a mudança na lei, a ideia de que apenas mulheres são vítimas de abuso sexual ainda está enraizada. Precisamos mostrar essa realidade.

* Luiz Gonzaga Neto é jornalista, analista em comunicação da Câmara de Atibaia e blogueiro, autor de brincantedeletras.wordpress.com. Esta coluna pode ser lida também no site do jornal O Atibaiense – www.oatibaiense.com.br.