Aqui você planta, aqui eu colho

Se é bem verdade que um fruto não cai distante de sua árvore, é momento de repensar nossas tendências individualizadas porque ninguém escapa da teia da vida e todos e todas nos encontramos dependentes da ação coletiva.

Anna Luiza Calixto

Pensamos ser mais que pessoas: sujeitos sociais marcados por peculiaridades, características únicas, traços particulares, preferências e gostos pessoais, conhecimentos e experiências próprias. Se é bem verdade que um fruto não cai distante de sua árvore, é momento de repensar esta tendência individualizada porque ninguém escapa da teia da vida e todos e todas nos encontramos dependentes da ação coletiva: nada que eu pretenda fazer no plano individual deixa de imprimir um resultado na vida de quem me cerca, a curto ou longo prazo. Nada de que precisemos está alheio à ação do outro, à decisão de um terceiro que se conecta à você através do que a ciência social chama de comunidade, traduzida no provérbio africano Ubuntu, presente – e, mais do que isto, recorrente – na análise popular do que é viver em sociedade: eu sou porque nós somos.
Contrariando a perspectiva individualizante, o sociólogo francês Pierre Bourdieu propõe que o ser humano não é tão original quanto o pensa. Qual seria a equação responsável por, comumente, determinado gênero musical ser apreciado por certa parcela da sociedade enquanto outro, mais erudito, é consumido por uma parcela social pertencente a uma classe econômica dominante? E por que, já que somos tão originais, apenas sete por cento das pessoas se une em matrimônio com alguém pertencente a uma condição socioeconômica divergente a sua ou a outro credo ou etnia? Por que, respondam-me vocês, o estudo assinado por Bourdieu, pesquisando as regularidades nas regras sociais, mapeou que os filhos dos operários tendiam a ter um conhecimento de artes mais limitado do que os filhos dos banqueiros e, “coincidentemente”, performavam pior em avaliações por conhecimentos específicos? A manutenção dos sistemas de desigualdade social parte deste conceito nomeado pelo francês como “regularidade social” ou, em termos mais simples, pode-se dizer que “filho de peixe, peixinho é”.
As exceções apenas confirmam a regra: quando um casamento entre sujeitos sociais pertencentes a diferentes condições socioeconômicas torna-se razão para conflitos e divergências domésticas, pautando até mesmo temáticas literárias e cinematográficas que exploram o choque entre realidades sociais distintas, tem-se a prova de que há uma hereditariedade responsável por perpetuar ciclos de miséria, desigualdade e fome e, lamentavelmente, rupturas provocadas por relações sociais ainda causam surpresa e são excepcionais.
A reflexão a que esta Coluna se propõe é, com olhos atentos, perceber a maneira através da qual nossa dinâmica social cotidiana é influenciada por tais processos de regularidade: convivendo apenas com aqueles e aquelas que correspondem ao estilo de vida a que nos habituamos por indução, tornamo-nos inábeis a conviver com a diversidade dos mosaicos da sociedade. Em um salto argumentativo, podemos ilustrar tal embate através da alegoria da chegada do português ao solo brasileiro: em uma perspectiva de alteridade, o outro – diferente de mim e daquilo que aprendi como certo – é estranho e, por consequência, deve ser corrigido, moldado à força até que se torne a versão mais próxima do que eu represento. Os entraves sociais em que esbarramos na convivência diária com a diferença nos servem como prova dos resultados desastrosos de uma ocupação sem legitimidade, pautada em falsas pretensões alicerçadas no clero. Historicamente, fomos ensinados a reprimir o que é estranho à nós, centralizando nossa perspectiva como unilateral e, portanto, correta.
O português invalida a cultura do índio, bem como contemporaneamente a cultura europeia persiste em tentativas de inferiorizar a herança cultural latina. Assim, o homem é ensinado a deslegitimar a presença da mulher nos espaços de poder e garantia de direitos, o que é provado pela tardia construção do primeiro banheiro feminino no Senado Federal, cujos tijolos foram empilhados apenas em 2015, vinte e sete anos após a elaboração da nossa Constituição Cidadã, que promete equidade no asseguramento de direitos elementares a todos e todas, sem qualquer distinção. Da mesma maneira, o padrão héteronormativo vem autorizando a parcela conservadora da nossa sociedade a humilhar, colocar em situação vexatória, violentar, violar e tirar a vida do outro, daquele que não corresponde à orientação sexual prescrita em uma cartilha que viabiliza a violência ao outro, àquele diferente de mim e, portanto, errado. Crianças, idosos, portadores de deficiências, transexuais, imigrantes, pobres… A corda sempre arrebenta do lado mais fraco.
Pesando os pratos de uma mesma balança – a desigualdade social – esbarramos na violência sexual, na briga no trânsito, na incapacidade de tolerar, nas pequenas corrupções cotidianas, no desrespeito ao assento preferencial, na recusa de colocar a máscara em espaços públicos, na tentativa de humilhar trabalhadores e trabalhadoras informais em razão de sua condição socioeconômica, nas páginas sangrentas de jornais que estampam crimes de ódio, no preconceito geracional, no mercado de trabalho excludente, nas políticas inescrupulosamente voltadas aos interesses da elite… Esbarramos em mim e em você, ambos educados para viver como peças orquestradas em uma mesma engrenagem movida por cifras e alimentada pelo abate dos mais vulneráveis. A diferença também somos nós. Pulsa em nossas veias e é traduzida por Oswald de Andrade em seu olhar otimista e poético sobre o outro e, possivelmente, quiçá, sobre amanhã: “Quando o português chegou, debaixo duma bruta chuva, vestiu o índio. Que pena! Fosse uma manhã de sol, o índio tinha despido o português.”