Quem pariu o Brasil que o embale

As filhas deste solo já nasceram e a pátria, sua Mãe gentil, não parece ver.

Por Anna Luiza Calixto

 

Prioridade absoluta. “Toda criança é nossa criança.” Perdi as contas de quantas vezes repetimos estas aspas como um norte para a luta pelos direitos de crianças e adolescentes. É desesperador assistir tão de perto a incoerência entre a doutrina da proteção integral e a realidade de tantas crianças que vivem distantes do que prometem as páginas do ECA.
Uma criança – nossa prioridade absoluta – foi violentada sexualmente por anos e teve seu direito à saúde, dignidade, proteção, desenvolvimento peculiar e tantas, tantas outras necessidades empíricas à infância ceifados. Sua infância foi levada pela opressão sistêmica que controla o corpo de meninas brasileiras e decide por elas, por nós. Uma menina de dez anos é estuprada repetidas vezes por seu tio desde os seis anos e o que provoca a comoção da parcela conservadora da população brasileira é o aborto legal da gestação provocada pela violência sexual.
Enquanto o responsável pela atrocidade sofrida pela criança estava foragido, verdadeiros algozes cujas mãos levam o sangue que cobre nossas vítimas de violência de culpa desde a colonização brasileira, deram as mãos em frente ao hospital responsável pelo procedimento legal (com ênfase no termo legal) para receber o médico autorizado sob os brados de “assassino”.
Não satisfeitos com a perversidade e absoluta hipocrisia já posta, os “manifestantes” (entre muitas aspas) tentaram invadir a ala do hospital para impedir o procedimento. Eu não conheço o Jesus utilizado como bandeira para violentar nossas crianças e validar a violência sexual. Eu conheço o Jesus que pediu para que os pequenos e pequenas se aproximassem, porque ali já eram (ou deveriam ser) prioridade absoluta. Não há credo ou religião capaz de justificar um discurso que pretende obrigar uma menina de dez anos a ser mãe. É tortura, pura, crua e simplesmente.
Apenas a circunstância de que o Estado e o poder judiciário estavam ponderando se o aborto deveria acontecer ou não já é, por si só, brutal. Uma menina brasileira do mesmo estado que Araceli, lembrada ano após ano durante o 18 de Maio, perdeu sua infância nas mãos de quem deveria protegê-la. Tudo a que esta criança precisou resistir e superar até que fosse possível realizar o procedimento que inicia o processo extenuante de reestabelecimento de seus direitos elementares, não foi suficiente para que a estúpida ala conservadora brasileira deixasse de revelar a identidade e o endereço da vítima.
Um estuprador está foragido: este é o crime. Três crianças e adolescentes são violentados sexualmente por hora no Brasil: esta deve ser a razão para a comoção nacional. O fluxo cultural perverso que culpa crianças pela violência que sofreram e as responsabiliza pelas consequências sórdidas da opressão estrutural e estruturante que nos leva a lutar, todos os dias, contra a violência sexual infantil está presente em cada adulto que sente-se no direito de discutir o direito desta criança; que sente-se no direito de desconsiderar todo o seu sofrimento; que sente-se no direito de desautorizar uma menina de dez anos em uma conjuntura legal porque “criança não tem que querer nada”.
São incontáveis as violações de direitos presentes em cada manchete tendenciosa e, mais do que nunca, a revitimização perpassa nosso tecido social, nosso estado e a balança do que chamamos de justiça. Os direitos da menina que está em todas as manchetes – como se seu corpo fosse público e sua infância uma mercadoria – são inegociáveis. Não existe discurso “pró vida” quando seus protestos desconsideram toda a dor de carregar o fruto de uma violência absurda; desconsideram a conjuntura de um estupro como responsável pela gestação precoce; desconsideram o quanto uma menina de dez anos está despreparada em tantos sentidos para gerar outra vida; desconsideram que ela pode morrer durante o parto e que, nesta lógica perversa, sua vida violada e vilipendiada não importa.
Ouvi os berros de quem a chamava de assassina e despudoradamente a encarregava do próprio sofrimento. Para quem duvida da existência de uma cultura de estupro, aqui está a resposta: uma menina de dez anos tem seu corpo controlado pelo Estado e seus direitos discutidos pelas esquinas como uma partida de futebol, em que cada um pode opinar conforme seu próprio juízo. Não há discussão quando falamos de direitos.
Perdemos mais uma infância e nosso discurso sobre a prioridade absoluta não estão salvando estas vidas; são meras fábulas mediante a cruel realidade de cada criança cujos direitos são violados. Não faremos minutos de silêncio porque já nos calamos por tempo demais. A última atitude que admitiremos enquanto nossas crianças estiverem sangrando é que fiquemos em silêncio. Vamos berrar por elas e com elas até que nos escutem. Parem de matar nossas meninas brasileiras. Os corpos femininos não estão sob a tutela e o poderio de um Estado opressor. Toda criança é nossa criança? Onde está a nossa mãe gentil quando precisamos explicar que gravidez aos dez mata? Por onde anda a prioridade absoluta?“Que tempos são estes em que precisamos defender o óbvio?” (Bertold Bretch)