É acordando que se cura

Produção textual para o Coletivo Literário Atibaiense Kalúnia.

Anna Luiza Calixto

“Este é precisamente o momento em que os artistas devem ir ao trabalho. Não há tempo para desespero, não há lugar para a autopiedade, não há necessidade de silêncio, não há espaço para medo. Nós falamos, escrevemos, fazemos linguagem. E é assim que as civilizações se curam. Sei que o mundo está machucado e sangrando e, embora seja importante não ignorar sua dor, também é crítico se recusar a sucumbir à sua malevolência. Como o fracasso, o caos contém informações que podem levar ao conhecimento, à sabedoria. Exatamente como a arte.” (Toni Morrison)
Este é precisamente o nosso momento. O momento dos artistas, dos loucos, dos sonhadores, dos perturbados, dos aprisionados, das viúvas, das crianças. Sim, enquanto a cidade dorme – ou deveria estar dormindo – é o nosso momento. Devemos acordar a nós mesmos e ir ao trabalho dentro de nós. É hora de revisitar. Olhe pela janela como se alguém de anos atrás te chamasse. Olhe pela janela como num susto. E que este susto te acorde – tudo sempre esteve ali. Vou ao trabalho.
Você acordou atrasado. Olhe pela janela como se o sol ainda não devesse estar ali. Não há mais tempo. Vamos ao trabalho. Não há mais tempo. Sem autopiedade e sem medo. Só coragem. Não há necessidade de silêncio – todos já estão acordados. Todos estão sangrando numa mesma ferida profunda e carregada pelo mundo aos trancos e barrancos – uma civilização que se cura.
A palavra é a cura. Nós falamos – sozinhos, aos pares, aos bandos, com as paredes – e pouco ou nada dizemos. Nós fazemos linguagem, nós escrevemos – e muito dizemos. Presos com nós mesmos como companhia por dez, vinte, trinta, perdi a conta de dias. Revisitamos os cantos da casa e renomeamos as plantas. Descubro que minhas caliandras também atendem se as chamam de me dá um beijo que eu te conto.
Investigo a mim mesma. Assim eu me recuso a sucumbir à perversidade e à malevolência de um mundo que eu machuquei, um mundo que fracassou. Acordo e estou em uma teia profunda que também atende se a chamam de caos. E subindo incansavelmente por suas paredes e ruídos, descubro que o caos também contém pequenas dobradiças pelas quais nunca me interessei. E são elas que me conduzem à sabedoria. Elas são a porta para fora da teia. A porta também atende se a chamam de arte.
Presa comigo mesma há perdi a conta de dias, leio um poema de repente como um voo das palavras direto da minha boca para aqui dentro, nossa casa. Nesta casa, eu nunca fui tão livre.
Passo os olhos apressados por tudo o que deixei de conhecer. Na correria das pupilas, acordo. Um ruído afiado corta impiedoso meu silêncio. O ruído é o mistério. O mistério me contou que ele também atende quando o chamam por eu.