A armadilha da criança boazinha: quando o silêncio vira sintoma

Quando o bom comportamento se torna validação de abusos e violências simbólicas.

 

Anna Luiza Calixto

 

“Ela é tão boazinha.”
“Não dá trabalho nenhum.”
“É obediente, madura para a idade.”

À primeira vista, esses elogios parecem inofensivos. Mas por trás dessa idealização da “criança boazinha” pode haver uma história de sobrecarga emocional, silenciamento e abandono afetivo. Crianças que aprendem cedo a agradar, a não incomodar, a conter emoções e desejos para manter o afeto dos adultos crescem com um peso que ninguém vê — e que, muitas vezes, só se revela na vida adulta como ansiedade, depressão, dificuldade de impor limites e relações marcadas pela culpa.
A criança boazinha quase nunca é ouvida porque nunca reclama, nunca chora, nunca exige. Ela aprende que o amor está condicionado ao seu bom comportamento — que ser aceita depende de ser leve, educada, funcional. Muitas vezes, é a filha mais velha que cuida dos irmãos, a menina que consola a mãe, o menino que “entende” a ausência do pai. Adultos se emocionam com sua maturidade precoce, mas não percebem o que ela custou.
Essa forma de criação é frequentemente tratada como virtude. Mas na verdade é uma forma de adultização emocional precoce — e, em muitos casos, de violência simbólica. Quando uma criança é elogiada por ser contida, silenciosa, submissa, o que está sendo premiado não é seu bem-estar, mas o quanto ela é conveniente para o ambiente à sua volta.
Essa criança “boazinha” aprende a engolir o choro, a não responder, a colocar os desejos dos outros acima dos seus. Cresce com medo de desagradar. E na vida adulta, isso se traduz em dificuldade de dizer “não”, em relacionamentos abusivos, em crises silenciosas, em esgotamento emocional — e até mesmo em distúrbios psicossomáticos, como dores crônicas ou insônia.
É importante dizer: ser generosa, sensível e cuidadosa não é um problema. O problema é quando isso se torna uma forma de sobrevivência emocional, e não uma escolha livre. A criança que nunca pôde ser “birrenta”, que não pôde falhar, gritar, testar limites, brincar de verdade — se transforma, muitas vezes, em um adulto que não sabe quem é sem o olhar do outro.
E o mais grave é que esse tipo de infância é naturalizada. Professores preferem os alunos quietos. Famílias valorizam os filhos que “ajudam” e não questionam. A sociedade pune crianças que expressam raiva ou tristeza, mas premia as que se silenciam — mesmo quando estão sofrendo.
Por isso, é urgente mudarmos o discurso. Criança não tem que ser boazinha. Tem que ser ouvida. Tem que poder dizer “não”. Tem que chorar, questionar, fazer bagunça, errar. A função do adulto não é moldar uma criança para agradar os outros — é protegê-la para que ela possa crescer inteira.
Na vida adulta, muitas dessas “crianças boazinhas” acabam em consultórios terapêuticos tentando reaprender a existir sem culpa. Tentando descobrir quais são seus desejos, suas vontades, seus limites. E isso leva tempo. Porque quando você cresce acreditando que o afeto depende da sua docilidade, qualquer ato de autocuidado parece egoísmo.
Queremos um futuro com adultos mais saudáveis emocionalmente?
Então precisamos permitir às crianças o direito de serem complexas: intensas, frágeis, barulhentas, inteiras. Precisamos criar meninas que não se desculpem por ocupar espaço. Meninos que possam sentir sem vergonha. E crianças que não precisem ser boazinhas para merecer amor.