Engolir o choro pra quê?

A frustração futura (quase) inevitável de silenciar os sentimentos da infância.

Foto/Canva

 

Anna Luiza Calixto

 

Quantos de nós ouvimos quando crianças “Engole esse choro senão eu vou aí e te dou motivo pra chorar!”?Nem preciso ponderar quantas vezes essa frase vem associada a outras como“Se apanhar na escola e eu descobrir, quando chegar em casa vai apanhar dobrado!” e até mesmo “Seja homem!” Eu escrevo livros para crianças, mas hoje meu papo é com os adultos que me leem por aqui.
É notável que frases como “Engole o choro” não fortalecem nenhuma criança no seu processo de desenvolvimento humano, nem a tornam mais madura (lembrando que maturidade é um conceito muito subjetivo e que eu, se fosse responsável pela formação de uma criança, não desejaria acelerar sua maturidade de maneira nenhuma). A única função executada por esse tipo de jargão é a de reprimir sentimentos, passando à criança a mensagem de que ela não deve demonstrar o que sente porque isso é sinal de fraqueza e ninguém gosta dos fracos.
Aliás, é válido destacar que não são apenas nossas palavras que comunicam às crianças nossos dogmas introjetados. As sobrancelhas arqueadas de decepção com a nota baixa em matemática, o olhar rigoroso quando o filho dá a sua opinião pouco bem-vinda, a feição retorcida em sinal de desagrado contra a “birra” da criança, além dos gritos e chacoalhões enfurecidos dos quais praticamente todos nós, se fecharmos bem os olhos, podemos recordar de nossas próprias infâncias.
A criança que engole o choro hoje é o adulto que reprime suas emoções amanhã, trazendo complicações graves para suas relações. O choro que eu engoli ontem, hoje é o soco na mesa, o grito que estou segurando há anos, o nó quase insolúvel na garganta, o aperto no peito…
O menino que escutou ontem “Seja homem!” vai se lembrar disso quando ver sua namorada saindo com as amigas numa sexta feira à noite e sentir ciúmes. Talvez ele não processe isso com inteligência emocional e vá fazer sua vontade de enclausurar a moça ser realizada com suas próprias mãos.
Se ele pega a namorada pelo braço e a puxa para dentro do carro, pode ser que ela se lembre que seus pais a tratavam com violência e que diziam fazer isso por amor. “Se ele está fazendo isso é porque me ama também!” – e quem é que vai convencê-la do contrário? Relacionamentos abusivos nos cegam e é desesperador quando mulheres como a do exemplo decidem engolir o choro e permanecer vinculadas a agressores.
Se grito com uma criança hoje estou ecoando os gritos de quem um dia fez isso comigo. É a velha (mas cirúrgica) equação de Paulo Freire que soma a opressão com uma educação castradora e resulta num adulto que deseja cumprir o papel de carrasco, como se fosse chegada a sua vez de oprimir.
Libertar a próxima geração dos vícios violentos que carregamos significa romper ciclos de violência e quebrar histórias dolorosas, reescrevemos nossas histórias através do cuidado e afetuosidade com que tratamos os pequenos.É preciso aprender a amar sem ferir ao outro e a nós mesmos.
Invalidar os sentimentos de uma criança é sentenciar sua relação com suas emoções mesmo que a longo prazo. É basicamente o mesmo que fazemos ao arrancar a legitimidade do “não“ das crianças, educando-as para obedecer cegamente aos adultos. O problema na disciplina servil cega é que a criança deixa de desenvolver o senso crítico necessário para não obedecer ao adulto que lhe diz para permanecer em silêncio quando ele lhe abusa sexualmente. Se ela aprendeu ao pé da letra que quando um adulto lhe diz não, é não e pronto, ela vai se calar diante das atrocidades cometidas contra seu corpo e dignidade.
Por que engolir o choro quando podemos nos sentar e conversar sobre o que me faz chorar? Educar as crianças como eu gostaria de ter sido educado (a) é sem dúvidas um desafio e tanto. Principalmente porque nem sempre reconhecemos as falhas educacionais que fragmentam quem somos hoje. Nem sempre sabemos como colocar em prática os valores que não nos foram apresentados quando crianças, dar a elas a educação que não recebemos. O segredo está em colar nossos cacos para nos tornarmos rede de apoio e proteção para as crianças, cicatrizando as dores para nos tornarmos capazes de amar por inteiro, amar até as lágrimas infantis. Só seremos capazes de amar quem elas são quando nos amarmos por quem somos, acolhendo nossas feridas e curando-as uma por uma. O remédio é o amor.