Cultura popular X Cultura erudita

Foi um período de crescente urbanização e acentuados avanços tecnológicos, que levaram parte da sociedade local a acreditar que Atibaia (e o país) viviam um período de franco progresso e desenvolvimento.

Márcio Zago

As manifestações culturais de cunho popular nunca foram unanimidade na sociedade atibaiense. Já nos primeiros registros do jornal “O Atibaiense”, no início do século XX, surgem artigos e crônicas que confirmam essa afirmativa. Principalmente em relação às congadas e às cavalhadas, chamadas na época de “Encontro do Rei”.
Foi um período de crescente urbanização e acentuados avanços tecnológicos, que levaram parte da sociedade local a acreditar que Atibaia (e o país) viviam um período de franco progresso e desenvolvimento. Nessa época, surgiu o primeiro cinema da cidade, uma grande novidade. O teatro também ganhou importância com o “Teatrinho do Mercado” e mais tarde com o próprio espaço dos cinemas, que também passaram a abrigar apresentações cênicas.
O espelho para boa parte dessa elite urbanizada era a cultura europeia. As tradições mais enraizadas no povo simples do campo logo passaram a ser sinônimo de atraso e retrocesso. Para eles, a cultura popular não tinha o “glamour” da cultura erudita, pelo contrário, expunha uma realidade que precisava desaparecer.
As roupas surradas, o linguajar caipira e o jeito rústico da população do campo envergonhavam a elite, talvez por revelar uma realidade que procuravam esconder. Sua origem vinha dos índios, dos portugueses, espanhóis, italianos, mas principalmente dos negros escravizados, e, acima de tudo, dos pobres, dos trabalhadores rurais, que através de suas manifestações culturais, muitas vezes sincretizadas com suas culturas de origem, expunham uma realidade que não condizia com seus sonhos burgueses.
Para essa pequena elite, essas manifestações precisavam ser extintas para que o novo surgisse. Num artigo publicado em 1931 pelo jornal “O Atibaiense”, Joviano Alvim, de tradicional família atibaiense, fez duras críticas à congada:”Estamos em 1931, século do jazz, da radiotelefonia, do cinema falado e custa-nos crer que Atibaia ainda conserve as congadas. Achamos que já étempo de se acabar com essa velharia (…). Decididamente precisamos acabar com estes costumes antiquados, que não coadunam com o nosso adiantamento”. E continuava: “O dinheiro que anualmente os festeiros despendem com jantares e bebidas aos “dançantes” bem podia ser aplicado em outras diversões mais a sabor da população como, por exemplo: o cinema e baile ao ar livre, concertos,leilões, tômbolas, fogos de artifícios, corridas de obstáculos e mesmo, às celebres cavalhadas, se fossem bem concorridas e melhor organizadas como outrora”. Sobre as cavalhadas, outro artigo publicado em 1920 pelo mesmo jornal dizia: “Muita gente por essa encantadora Atibaia não se conforma com o ridículo de certas festas tradicionais, que afinal, nós resignados Jecas nos habituamos. Entre outras, a cavalhada tem dado cabelo branco aos bairristas intransigentes: Que caipirismo Santo Deus! Que vergonha essa bobagem de cavalhada! Alguns hiper-civilizados chegaram a pretender que se acabasse com a cavalhada porque, diacho, aquilo era uma manifestação de grande atraso!”.
Apesar do descaso de parte da sociedade atibaiense, as manifestações populares resistiram (e resistem) ao tempo, principalmente em razão da enorme fé e convicção religiosa de seus participantes. Nota-se também a importância do trabalho realizado por estudiosos, pesquisadores, historiadores, jornalistas e demais profissionais das letras que se debruçaram sobre o tema. O reforço teórico que vem desse trabalho cumpre a função de registrar e “traduzir” para os desatentos a importância das manifestações populares como reservas identitárias da comunidade: Ali estão nossas raízes, nossa identidade. Conhecê-las traz um senso mais profundo de pertencimento à nação.

* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.