Estupro: substantivo masculino

A perspectiva histórica feminina e suas personalidades apagadas e silenciadas pelo patriarcado: somos um lembrete de que estupro culposo não existe.

 

Por Anna Luiza Calixto, escritora e palestrante

 

Pau que bate em Maria, não bate em Francisco. Por onde começar quando se esbarra com uma “justiça” – mais vendada por cifras que nunca – intervindo em favor do ódio e da cultura do estupro. Pautar a cultura do estupro é uma demanda feminina e feminista urgente: Mariana Ferrer, jovem catarinense, foi violentada sexualmente; estuprada pelo empresário André de Camargo Aranha durante uma festa no final. Mariana trabalhava como promoter na ocasião e, muito embora as poucas imagens de segurança disponíveis indiquem que a jovem foi colocada sob o efeito de embriagantes e o exame pericial tenha atestado que a jovem teve o hímen rompido, sendo virgem antes da ocorrência do estupro, o julgamento terminou com a sentença de “estupro culposo”, tipificação criminal que inexiste no Código Penal brasileiro (ou de qualquer Estado Democrático de Direito). O promotor de justiça Tiago Carriço de Oliveira alegou inescrupulosamente que Aranha tão teria condições para identificar, durante a violência que ele chama de “relação sexual”, que Mariana não estava em condições de consentir ou não com o ato. Em sua concepção machista, alicerçada em perspectivas e interesses particulares, o empresário André de Camargo Aranha não teve a intenção de estuprar Mariana, defesa acolhida pelo juiz Rudson Marcos, que emitiu a alegórica sentença de “estupro culposo”. “Taca a pedra na Geni.”

O processo foi marcado por inúmeras tentativas incisivas e imorais da defesa de Aranha, representada na figura do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que proferiu anunciadas ofensas à vítima durante o julgamento, mal sendo repreendido por vossa excelência. A defesa apresentou até mesmo fotos de ensaios profissionais da jovem enquanto modelo, definidas como “ginecológicas” pelo advogado representante de Aranha, que sequer foi questionado sobre a relação das mesmas com o caso. Rosa Filho chegou a afirmar que “jamais teria uma filha do nível de Mariana” e repreendeu sua crise de choro dizendo:  “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”. Apesar do caso Ferrer permear as redes sociais há mais de um ano provocando a profunda indignação do movimento feminista contra a violência ocorrida e a morosidade do processo, a defesa de Aranha se sentiu autorizada a denunciar a conta através da qual a jovem se pronunciava sobre o caso do Instagram, solicitação à qual a plataforma aderiu. Ainda há quem duvide da cultura do estupro.

Debruçada sobre esta perspectiva, deparei-me com incontáveis silhuetas femininas que, há tempos, figuram nos mais plurais segmentos da vida pública e tiveram seus legados apagados dos livros de história; seus monumentos – literalmente – derrubados e suas ideias desapropriadas e descaracterizadas no decorrer da construção e consolidação do patriarcado como estrutura indeclinável do eixo que move o mundo como o conhecemos.

Passando por cada uma de tais histórias, conheci um novo processo de formação identitária da mulher revolucionária como uma rebelde, uma bruxa, a fêmea subversiva que recusa-se a fazer parte da sequência histórica. Personagens de carne, osso e coragem para lutar como Hipátia, matemática e filósofa do antigo Egito que assina a invenção do astrolábio, dando o pontapé inicial no cálculo da humanidade sobre a posição do sol, da lua e das estrelas. Como Maud Stevens, artista circense norte americana que, em meados de 1.800, viajava pelo mundo como contorcionista com o corpo coberto por tatuagens. Como Policarpa Salavarrieta, espiã revolucionária que trabalhou inarredavelmente pela libertação da Colômbia das mãos do cruel e autoritário governo espanhol. Ou Wilma Rudolph, atleta que quebrou três recordes mundiais nas Olimpíadas de 1960 após uma dura recuperação do diagnóstico de poliomielite. Como Hatshepsut, mulher que governou o Egito por vinte e cinco anos – muito antes da era de Cleópatra – e reinou por mais tempo (e com mais êxito) do que qualquer outro faraó em toda a linha do tempo egípcia. Embora ou em razão de todo o seu sucesso, a rainha teve seu nome removido dos registros históricos locais e os monumentos que a homenageavam destruídos, em uma tentativa óbvia de silenciamento e desapropriação do imprescindível papel de destaque desempenhado por ela.

Eu poderia aqui escrever sobre Cora Coralina, BalkissaChaibou, Evita Perón, Frida Kahlo, YusraMardini, Maria SibyllaMeian, NellieBly, Tama de Lempicka, Mae Jemison, Maria Montessori, Nancy Wake e tantas, tantas outras mulheres extraordinárias que passaram a inspirar minha caminhada como ativista por direitos humanos dos públicos mais vulneráveis. Na contramão deste movimento, estas personagens não figuram entre nosso repertório sócio cultural e precisam ser buscadas, uma vez que as tentativas de apagamento histórico a rigor persistem. Ler a respeito e se apropriar destas histórias torna a emancipação feminina uma narrativa factível e não a fábula como tantas vezes é lembrada pelo imaginário popular, escrevendo por cima das linhas rasuradas pelo machismo e pelo tempo.

Precisamos, absoluta e primordialmente, educar nossas meninas para que se sintam representadas na história de seu país e de sua cultura; educar nossos meninos para ouvir as vozes, respeitar os corpos e conhecer as histórias de nossas mulheres. Para que a história de Mariana Ferrer seja a última entre tantas histórias que carregam o sangue feminino, capaz de transformar-se tão velozmente em estatísticas: vítima pelas mãos de u  homem; vítima pelo martelo de um juiz; vítima pelo poderio de um sistema machista e opressor. A violência sistêmica do Estado patriarcal viola mulheres e meninas dia após dia porque há uma “justiça” que autoriza o homem em posição de poder. Não se estupra sem querer. Não está previsto em Lei, é absurdo: não existe estupro culposo.