A educação contra a barbárie

Anna Luiza Calixto, palestrante e escritora

 

Debruçar-se no processo transversal que versa entre a sociedade e o Estado para a desbarbarização dos sujeitos políticos traduz a intenção de Adorno quando aponta esta pauta enquanto a questão mais urgente da educação contemporânea. O filósofo alemão, em texto de caráter dialógico com o antropólogo americano Ernest Becker, pauta o impedimento da barbárie como a ordem prioritária para todo o pensamento educacional da primeira infância à especialização profissional, tendo em atenção o prisma de uma civilização que vive o seu apogeu tecnológico ao passo que convive com o que Adorno nomeia como um impulso de destruição – alcunha absolutamente pertinente para conceber a ideia de cultura de ódio – em seu tecido social primário, abrigando em seu seio um atraso civilizatório disforme que alimenta a aversão primitiva ao conteúdo básico da civilidade: a cidadania.
“Como eu poderia amar o bem se não odiasse o mal?” – as aspas atribuídas à August Strindberg, dramaturgo sueco, são empregadas no texto por Becker em meio à reflexão de que o combate à barbárie não pode se dar no plano hiperbólico de repressão a quaisquer moldes de agressão ou pensamento contrário à norma, pois não se trata do que ele nomeia como elogio à moderação pura. Ambos compreendem que não há qualquer indivíduo plenamente exímio da barbárie, visto que todos estão inseridos no dilema da culpabilidade do sistema e tudo passa a depender da reversão do curso de tais instintos da desgraça para o oposto da barbárie: a civilidade e a cidadania.
Puerilizar o conceito de barbárie é uma prática profundamente sintomática de uma política despreocupada com o avanço da reversão da cultura do ódio, pautando os indivíduos sociais que não se converteram em obedientes instrumentos da ordem vigente como propriamente bárbaros, ao passo que o poder em sua configuração formal veste a roupagem da essência mutilada das pessoas.
Mediante a pandemia do Covid-19 e seu necessário enfrentamento através de medidas de caráter social e sanitário, tal como o distanciamento entre as pessoas, a educação também perpassa um processo de reinvenção. Não raro, as redes educacionais mantém sua prioridade conteudista ainda que em períodos tão duro que, em um país dessemelhante como o nosso, acontuam as desigualdades e as violações de direitos.
O momento requer coragem para construir um novo desenho de educação que busque amenizar as desigualdades e promover vivências, ao passo que atua ao lado da rede de proteção para assegurar a proteção aos direitos elementares das crianças e adolescentes do território. Quem tem fome, não aprende. O rendimento não pode ter mais valor do que a integração da escola à comunidade local para compreender os espectros mais perversos da miséria e da violência. Se a educação está à distância, como fazer com que o direitos estejam por perto?
Pensar educação sem humanização é trabalhar a serviço da barbárie. A pandemia do Covid-19 desvelou os aspectos mais cruéis da competitividade, do necroliberalismo e da coisificação social ao patamar de optar pelo avanço econômico à preservação da vida. A educação é ferramenta imprescindível para transmover este fluxo cultural perverso no percurso histórico, considerando e adaptando-se às adversidades e seus moldes contextuais. Construir e formar cidadãos, e não notas e diplomas. Pensar a educação como democracia, liberdade e libertação das violências. Não há nada mais humano que isto. A educação como o próprio pensar.
Plausível e necessário, poderia ser inferido que o fito deste estudo é a conversão dos indivíduos sociais em seres passivos e inofensivos, por assim dizer domesticados, o que seria uma conclusão equivocada. Tal apatia civil constitui, por si só, uma forma de barbárie, tendo em atenção que estes cidadãos cuja essência política está adoecida são os mesmos que contemplam o horror e se omitem no momento decisivo.
Pensar a educação contra a babárie aponta-nos a dicotomia da civilidade contemporânea, em que tal responsabilidade é uma quimera que não se encerra enquanto o último adolescente do campo não se envergonhe quando, por exemplo, (…) se comporta de modo brutal com uma moça, como acentua Adorno. A vergonha sobre a rudeza presente em nossos espectros culturais é imprescindível para a desbarbarização que buscamos, para uma educação humanizadora que se manifeste desde a primeira infância no reconhecimento e rejeição de todas as formas de brutalidade, em quaisquer proporções.
Para pensar a educação contra a barbárie não apenas como utopia – horizonte na direção do qual deve-se caminhar – mas enquanto projeto de nação, política pública e prática cultural, é mister que as estruturas dominantes dêem espaço às construções coletivas em que a brutalidade seja uma mancha no passado que nos envergonhe e a desbarbarização seja, ao passo que social e educacional, propriamente humana e presente.