Desburocratização: soluções simples por trás das grandes palavras

Práticas cotidianas para mitigar os excessos burocráticos nas relações humanas.

 

 

Anna Luiza Calixto

“A simplicidade é o último grau de sofisticação” – assim postulou Leonardo da Vinci a respeito da derradeira prática social de complexificar as relações humanas. Em síntese: tudo é mais simples do que aparenta ser e precisamos, com urgência, abrir mão das burocracias cotidianas no tratar coletivo de questões de natureza primária.
Há pouco mais de uma semana, visitei um município paulista cujos grupos escolares foram convidados a participar de atividades com o nosso Projeto Social na Secretaria de Educação. Ao findar das Palestras e oficinas, algumas crianças vieram até mim pedindo autorização para beber água na entrada do prédio, o que prontamente permiti, pedindo apenas que comunicassem ao professor responsável pelas turmas naquela tarde. Momentos depois, porém, percebi que o grupo não havia ido até o bebedouro porque o moço falou pra gente que ali é só pros funcionários. Perceba você que não faria qualquer diferença – mesmo que ínfima – se aquelas três crianças fizessem uso daquele dispositivo, visto que nenhuma característica dele o tornava impróprio ou inacessível a elas, ou este episódio sequer prejudicaria os “usuários naturais” da ferramenta. A justificativa? Normas da casa.
Aliado a isto, fui convidada para assistir a um show há poucos meses e, no mesmo setor em que estávamos posicionados, uma mulher perto dos seus cinquenta anos, ao final do show, sentou-se próxima ao corredor para descansar. Não demorou muito para que um dos seguranças se aproximasse para orientá-la a se levantar, em razão de uma das normas da casa que impedia qualquer visitante de se alocar sentado próximo dos corredores. É perfeitamente compreensível que o público não possa assistir ao espetáculo obstruindo os corredores, uma vez que, em face de qualquer incêndio ou acidente, estes são instrumento de rotas de saída imediata e as pessoas ali sentadas ofereceriam risco iminente. Mas… ali, ao final do show, uma única pessoa que se senta para descansar por alguns minutos, ofereceria qualquer risco? O que há de tão perigoso neste contexto que merece ser repreendido? Pela segurança de quem a advertência é dada?
As ilustrações colocadas tornam palpável a proporção burocrática nas nossas atitudes triviais. Provocam-me a questionar quantos isto não é permitido e normas da casa já escutei e, afinal, não faziam qualquer sentido. Um departamento público que se recusa a transferir um telefonema – porque esta não é a sua atribuição – e é omisso ao privar o cidadão de informações que “pertencem a outro segmento” mas que, na realidade, também são sabidas ali. Uma sequência de carros que se emparelha para impedir outro que dá a seta de atravessar uma curva, mas que ao ver uma mão saindo da janela e sinalizando o lado para qual irá direcionar o veículo, estarrece por, talvez, lembrar-se que por trás do volante há outro ser humano, como todos os que se acumulam em congestionamentos. A burocracia versa entre um sistema necessário de informações computadas hierárquica e sistematicamente e uma prática disfuncional de complicações compiladas que só fazem distanciar os sujeitos que coexistem socialmente. Saibamos diferenciá-las.
Não raro estas negativas são postas por um vício. Diz-se não porque é mais fácil do que pensar no que concerne o sim. As relações sociais não cabem, em sua inteira complexidade, em sistemas e comandos regulamentados em moldes inexoráveis. Faz-se necessário o estímulo, quase pedagógico, ao redesenho das normas da casa de acordo com as demandas daquele espaço, cujo público deve questionar, de maneira inteligente, responsável e educada, as regras ali construídas – e não impostas.
A desburocratização passa, indubitavelmente, pela estrada da humanização das relações. Se aquele professor aprende a olhar para a sede das crianças que correram por todo o dia e procura, então, uma ferramenta simples para resolver aquele problema… E se aquele segurança observa ali, não um ato de rebeldia, mas o resultado do cansaço de uma pessoa que passou horas em pé e sentiu a necessidade de sentar-se por alguns instantes… A visita ao próprio olhar redireciona nossas atitudes cotidianas e estas, por sua vez, transformam nossos fluxos culturais automatizados, flexibilizando as práticas aqui ilustradas.
Pois da Vinci estava certo. A simplicidade sofistica os espectros dos relacionamentos humanos. Permitir-se quebrar regras que em nada acrescentam à convivência coletiva é mais que saudável, urgente. Destituindo amarras sociais e olhando veículos, filas, salas de aula e multidões como humanos: assim, passamos a perceber a torpeza do que popularizou-se como burrocracia.
Quem sabe assim passemos a nos questionar mais pró ativa e criticamente e, ao ouvir um Será que eu posso? passar a responder com um Ah, por que não?

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