18 de Maio: faça bonito por nossas crianças e adolescentes

Todo tipo de contato sexual com crianças é crime. O combate a essa violação caminha no fluxo da mobilização social pela denúncia e pela desconstrução cultural.

Anna Luiza Calixto

 

Dezoito de Maio de 1973: perdemos a menina Araceli. Aos oito anos, a menina capixaba levava uma encomenda para sua mãe e, por isto, ausentou-se da Escola mais cedo. A última vez que foi vista – por uma testemunha ocular – foi enquanto brincava com um gato na frente de um bar da capital Vitória.
Araceli foi raptada, violentada, violada sexualmente sob efeito radical de drogas. A menina foi morta, teve seu corpo desfigurado pela ação de ácidos e carbonizada. Sofreu todos os tipos de violência e foi encontrada, apenas seis dias depois, em avançado estado de decomposição em um matagal do município.
A perícia localizou, mesmo com dificuldades, marcas no corpo da menina que apontavam a culpa de Dante Michelini de Barros e sua família, majoritariamente composta por homens, conhecidos pelas festas dadas em seu apartamento, em que recebiam vítimas da mesma faixa etária que Araceli, exploradas sexualmente. A sentença foi dada e o juiz responsável pelo caso, Dr. Hilton Silly, decretou o cumprimento de 18 anos de reclusão e o pagamento de 18 mil cruzeiros, por ter sido provada a materialidade e a autoria do crime.
Os acusados recorreram da decisão e o caso voltou a ser investigado. O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJ-ES) anulou a sentença, e o processo passou para o juiz Paulo Copolilo, que levou cinco anos para analisar o processo. O resultado destes cinco anos de estudo? Uma sentença de mais de 700 páginas que absolvia os acusados por falta de provas. Porque, na avaliação daquele Juiz, uma menina de oito anos que trazia todas as marcas de violência sexual e física, com traços de crueldade, tendo sido vista próxima ao apartamento daquela influente família capixaba, cujas digitais não se eximiram de acusações, não era prova suficiente para concluir o caso
Neste 18 de Maio, completamos 47 anos sem Araceli. Décadas de impunidade e revolta. Anos e anos de luta, celebrada e lembrada durante o Dia Nacional do Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, em memória da pequena Araceli.
Ao mesmo passo, temos vinte anos da Campanha Faça Bonito por nossas crianças e adolescentes. E a importância deste movimento nunca foi tão palpável, considerando que – durante este período de distanciamento social em decorrência da pandemia do Covid-19 – muitas crianças e adolescentes estão confinadas com seus próprios abusadores, isoladas com seus algozes, o que é profundamente preocupante, ao passo que três meninos e meninas são violentados sexualmente por hora no Brasil.
Em índices absurdos que nos apontam milhares de meninos e meninas sofrendo com a violência sexual diariamente no Brasil – três crianças e adolescentes por hora –, faz-se necessário calcar a participação de toda a sociedade – conforme o Art. 227 da Constituição Federal nos responsabiliza – para o olhar atento, o cuidado e, principalmente, a denúncia contra todo tipo de ameaça aos direitos elementares do público infantojuvenil.
Para além do Disque 100 – portal nacional de denúncias contra violações aos direitos humanos – que, infelizmente, vem se mostrando ineficaz no acolhimento rápido e no encaminhamento de muitas denúncias para a rede protetiva local – podemos contar com o aparato e o instrumental do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069|1990), a exemplo do fundamental do Conselho Tutelar: órgão autônomo e colegiado, responsável por zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, intervindo em casos de violência sexual, abuso, exploração e outras violações de direito.
A rede educacional – por meio dos professores – pode (e deve) utilizar como instrumento sua vivência diária com crianças e adolescentes para identificar e monitorar casos de violações de direito que venham a se manifestar no ambiente escolar, um verdadeiro termômetro para a violência. Esse termômetro inclui sinais como a variação de comportamento para padrões agressivos; timidez e dificuldade de socialização repentinas; e até manifestações mais severas, como hematomas. Diante desses sintomas, é necessário prestar socorro e, comprovada a suspeita, fazer a denúncia.
Todo tipo de contato sexual com crianças é crime. O combate a essa violação caminha no fluxo da mobilização social pela denúncia e pela desconstrução cultural, em um pensamento despido de preconceitos e consciente, empático. Uma sociedade que não se responsabiliza pelo fim às injustiças sociais, também aperta o gatilho das duas alavancas para persistência de todo o tipo de ameaça aos direitos de crianças e adolescentes: a naturalização da violência e a culpabilização da vítima. O estímulo à erotização infantil e aos papéis de gênero nada faz além de contribuir para as estatísticas de abuso e exploração sexual, que afetam diretamente a realidade majoritária de meninas.
A culpa da violência nunca é do violentado. Fazer bonito quer dizer estar disposto a ouvir e defender: sem julgar; sem culpar. Criança não namora, nem de brincadeira. Não existe esta história de criança não tem que querer nada. Não há consentimento em qualquer espécie de tentativa de contato sexual com crianças e adolescentes. NÃO é NÃO; SIM é NÃO; TALVEZ é NÃO. Abuso sexual é crime.
Não existe prostituição infantil, crianças não se prostituem; mas sim, e lamentavelmente, são exploradas sexualmente em todo o Brasil.
O Estatuto da Criança e do Adolescente aponta: viola-se pela ação e pela omissão (Art. 5°). Não deixe de falar sobre o assunto em sua casa, com os pequenos. Além da cabeça, ombro, joelho e pé, as crianças e adolescentes têm sexualidade – e ela precisa ser protegida por todos nós. Não ensinemos as crianças e adolescentes a engolir o choro, mas a gritar por seus direitos e dizer NÃO. A entender os limites do seu corpo e defendê-los. A viver sua infância com plenitude, de forma saudável, sem ser violado e desrespeitado em sua condição empírica e peculiar de desenvolvimento.
Faça bonito e proteja nossas crianças e adolescentes contra o abuso e a exploração sexual. Com a nossa luta, todas poderão crescer, assim como a flor da Campanha do 18 de Maio: desabrochando em inocência, em felicidade, em proteção. Por cada uma de nossas crianças. Para que não se repita a história de Araceli.