Tradição e resiliência das Congadas de Atibaia

Márcio Zago

Dentre as diversas manifestações culturais que integram a rica identidade do município, as expressões religiosas são as que se mostram as mais tradicionais. Algumas diretamente vinculadas ao catolicismo oficial, outras sincretizadas a religiosidade africana, essas práticas passaram por diferentes tratamentos e aceitações sociais ao longo do tempo. Aquelas que fazem parte do calendário litúrgico da igreja sempre contaram com o constante apoio das irmandades religiosas, das variadas classes sociais e até mesmo da igreja.
No entanto, isso não ocorreu com outras manifestações enraizadas na devoção popular, como as congadas, por exemplo. É sabido que o Padre Abel tinha resistência em relação às congadas já no final do século XIX. Esse fato se repetiu em algumas administrações subsequentes, por outros padres da paróquia. Na sociedade civil, também existiam opiniões favoráveis e desfavoráveis, como a de Doutor Afonso de Carvalho, uma figura pública importante e ferrenho defensor da manifestação.
O ápice da resistência se deu com um artigo publicado em 11 de janeiro de 1931 nas páginas do jornal “O Atibaiense”. O artigo era assinado apenas como “J” e fazia uma crítica severa às congadas, repleta de desconhecimento, preconceito e equívocos: “(…)Estamos em 1931, século do jazz, da radiotelefonia, do cinema falado e custa-nos crer que Atibaia ainda conserve as congadas. Achamos que já é tempo de se acabar com essa velharia. Há trinta anos que conhecemos os “dançantes” da festa do Natal, e dessa época até nossos dias, mudaram-se os generais, os príncipes, os reis, mas as cantigas são as mesmas. (O autor se referia às embaixadas, umarepresentação dramatizada de teor guerreiro que compunha os rituais das congadas e que deixou de existir nos anos oitenta).
Os conservadores taxar-nos-ão naturalmente de intolerantes, e dirão que é uma coisa tão tradicional quão necessário, e que a festa de Natal sem congada não tem graça… Realmente, é muito interessante, é muito bonito, mas só para os estranhos, os que não nasceram aqui, admirados com Atibaia, que goza dos foros de cidade civilizada, ainda que mantenha uma tradição com esta, que só serve para nos deprimir.
Decididamente precisamos acabar com estes costumes antiquados, que não coadunam com o nosso adiantamento. Se os bandos de “dançantes” fossem bem ensaiados, bem uniformizados e que pudéssemos apresenta-los aos nossos visitantes como uma tradição digna de nota, vá que tolerássemos. Mas apresentarmos meia dúzia de gatos pingados, mal vestidos, desafinados, pulando e amassando a lama das ruas, quando não, levantando nuvens de pó.
Tenham santa paciência, não podemos absolutamente nos conformar com isso. Tudo tende a evoluir, por isso precisamos apresentar novidades que tornem mais interessantes as festas do natal, a fim de conseguirmos maior afluência de visitantes e que estes saiam daqui encantados com a nossa hospitalidade. O dinheiro que anualmente os festeiros despendem com jantares e bebidas aos “dançantes” bem podia ser aplicado em outras diversões mais a sabor da população como, por exemplo: o cinema e baile ao ar livre, concertos, leilões, tômbolas, fogos de artifícios, corridas de obstáculos e mesmo, às celebres cavalhadas, se fossem bem concorridas e melhor organizadas como outrora.
É com novidades que se consegue prender a atenção dos que nos visitam e não com essas coisas antiquadas que só servem para ridicularizar-nos. Já que estamos na época do “bilhete azul”, é oportuno concedermos “aposentadoria” aos Roques, Luzias, Caetanos e outros”. (Obs: A expressão ‘bilhete azul’ ganhou popularidade devido às conquistas trabalhistas da época e se refere a “demitir do emprego”.
Roques, Luzias e Caetanos foram importantes lideranças e mestres populares da manifestação). Os argumentos do autor foram refutados mais tarde pelo trabalho desenvolvido por João Batista Conti e pela visita do folclorista Mário de Andrade à cidade, que veio especialmente para registrar as congadas. A propósito, “J”, que assinava o artigo, segundo o livro “Atibaia Folclórica”, de João Batista Conti, era o Sr. Joviano Alvim, uma figura pública importante da época e filho do Major Juvenal Alvim e de Gertrudes Pires de Camargo. Mais tarde, em 1937, Joviano Alvim foifesteiro, prestando amplo apoio às congadas, recebendo inclusive, elogios do próprio Mário de Andrade.

* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.