De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?

A espetacularização da solidariedade torna-se frequente nos atos da chamada caridade, em que vastas doações são entregues.

Anna Luiza Calixto

Em mais um forte inverno que evidencia as assimetrias de condição socioeconômica, a fome e o frio, trago à baila as aspas publicadas ainda no primeiro capítulo de uma das obras mais conceituadas na literatura de Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. Freire publica trecho bastante emblemático do Sermão contra o usuário de São Gregório de Nissa, padre capadócio e teólogo renomado. O fascículo, escrito no ano de 330 d.C, poderia ser contemporâneo ao passo que reflete sobre a dinâmica social de assistencialismo e pretensiosa generosidade dos exploradores, através da ilustração da esmola do opressor, oferecida em ato de contemplação e gratificação pessoal, muito mais do que de auxílio fidedigno ao outro, o oprimido.
“Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbulo, ele o recusaria porque teria a impressão de morder a carne de seus irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras corajosas: não sacies a minha sede com as lágrimas de meus irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de meus companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato. De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?”
A espetacularização da solidariedade torna-se frequente nos atos da chamada caridade, em que vastas doações são entregues – contanto que o benevolente seja assistido por câmeras. Ainda no rastro clérigo, aqui cito Jesus Cristo quando propala que diante de esmolas, doações ou quaisquer ações de suposta solidariedade, não toque trombetas diante de si, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. A caridade executada somente sob holofotes revela a verdadeira fome – a de aplausos.
Preocupar-se com a infância e a adolescência brasileira de maneira sólida e pró Para mitigar a fome, a miséria, a violência e a opressão que sobressaltam aqueles que ofertam esmolas, faz-se necessária a denúncia – esta que não vem para punir o violentado, mas para construir intersetorialmente caminhos que rompam o ciclo que o viola. A busca pelo fomento social da cultura da denúncia é árdua, uma vez que a mesma não é alvo de tantos aplausos quanto a fotografada entrega de cestas básicas em uma comunidade carente. Quantos daqueles que, durante as celebrações cristãs, compadecem-se dos órfãos, pobres e famintos teriam condições para, no decorrer dos outros trezentos e sessenta dias, por exemplo, contratar líderes de famílias desassistidas pelo poder público para, assim, suprir a lacuna que predomina no assistencialismo despreocupado? Ou para assegurar a qualificação de uma mulher solo que educa e sustenta quatro crianças enfrentando enormes dificuldades? Ou para, através de intervenções políticas, instrumentalizar os equipamentos públicos de saúde da periferia?
A denúncia abre caminhos que um pedaço de pão não pode percorrer. O controle social vai a distâncias que uma cesta básica desconhece. A participação ativa da comunidade no combate às violências mobiliza espaços em que uma fotografia ou aplausos não serão ouvidos. A mudança não soa trombetas para a hipocrisia e a omissão.
A proposta desta Coluna não é pedir para que se faça mais, mas para que se faça diferente. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato.A dívida histórica que o Brasil carrega para com as populações mais vulneráveis é indiscutível. Mas o caminho que devemos percorrer para saciar nossa fome de transformação… Ah, sobre este há muito o que se discutir.
De que vale consolar um pobre se tu fazes outros cem? De que vale apresentar esmolas àqueles de que roubamos tudo? De que vale um único pão no país que passa fome? De que valem os holofotes quando somos escuridão? A pretensa solidariedade mente e, o que é ainda mais severo, não revela a parte da história que aponta nossa culpa. Talvez dês esmolas. Mas elas serão o bastante para pagar por nossos pecados?