A Cruz dos Enforcados

O historiador João Batista Conti, em seu livro “Atibaia Folclórica”, salienta não ter encontrado nenhum documento oficial sobre o tema, mas reproduz uma triste história que ouviu de seus avós.

Márcio Zago

Fatos, histórias e lendas de teor nada edificante também fazem parte da longa história do município. A Santa Cruz dos Enforcados é uma delas. Situada onde hoje se encontra a Praça Miguel Vairo, essa cruz demarcava o local onde era montada a forca utilizada para punir os condenados de outrora.
O historiador João Batista Conti, em seu livro “Atibaia Folclórica”, salienta não ter encontrado nenhum documento oficial sobre o tema, mas reproduz uma triste história que ouviu de seus avós. A narrativa fala de uma velha senhora escravizada de nome Sinhara. Ela, segundo os preceitos da época, era propriedade da “Fazenda do Velho Silva”, situada no bairro da Boa Vista.
A fazenda possuía inúmeros negros escravizados naquele distante ano de 1875. Certo dia, Sinhara, depois de receber mais uma injusta e violenta punição física no tronco da fazenda, jurou vingança. Sua punição recebia o nome de “bacalhau”, em razão dos algozes salgarem os ferimentos depois de abertos pelo chicote de couro que desferiam sobre a vítima. Com a natural hipocrisia reinante na época, a rotina da fazenda incluía as caminhadas dominicais de Dona Candinha, esposa do fazendeiro, até as missas que ocorriam na cidade.
Nessas ocasiões, ela deixava seu único filho, de aproximadamente oito anos, aos cuidados de uma octogenária senhora que vivia na fazenda, e na qual depositava total confiança. Com a morte da velha senhora, Sinhara foi convocada a tomar seu lugar e cuidar da criança na ausência da patroa. Na primeira oportunidade que surgiu, Sinhara cumpriu sua promessa de vingança. Matou e picou o garoto, colocando seus pedaços para cozinhar no tacho de cobre da cozinha da fazenda.
O destino de Sinhara foi a forca e suas últimas palavras foram: “Morro, mas aquele menino não surrará negro com bacalhau, este gosto eu tenho”. Essa história, independentemente de ser verdade ou lenda, traduz a triste realidade de nosso passado escravocrata, injusto e vergonhoso. A forca deixou de existir (se é que existiu), mas em seu lugar persistiu por muito tempo uma cruz.
O local ficou conhecido como Largo da Forca, que depois virou Largo da Cruz. No início do século XX, esse lugar ainda contava com uma velha igreja e uma cruz, recebendo com frequência a visita de inúmeros romeiros e devotos que viam ali um espaço sagrado. Em 1902, o jornal “O Atibaiense” já publicava matérias que informavam sobre a festa que ocorria todo mês de maio no local. Chamada Festa do Santo Cruzeiro, nela havia levantamento do mastro, músicas, foguetes, missas e ladainhas à noite.
Naquele mesmo ano, o jornal também publicou uma campanha popular visando levantar recursos para a construção de outra capela que seria erguida ao lado da capela já existente. A capela original era nomeada “Capela do Chico Leite” e, segundo as informações da época, encontrava-se em péssimas condições. Poucos anos depois, surge o nome de Castro Faffe nas ações ligadas à Festa da Santa Cruz. Castro Fafe foi um imigrante português que assumiu a função de zelador da capela. Através dele, foi construído em 1904 um coreto em frente à cruz e a capela, aumentando consideravelmente a importância da festa no município.
Num longo artigo de 1909, o próprio Castro Faffe descreveu a cruz lá existente. O artigo visava prestar contas de uma reforma que ele executava no local: “A cruz dos enforcados estava completamente podre (…) A nova cruz já se acha feita pelo mesmo Romualdo e colocada no mesmo terreno em cima de um pedestal com 3 degraus. Neste pedestal, verifica-se um cofrezinho pregado na mesma cruz e com a era de 1909. No terceiro e segundo degraus, avistam-se os seguintes dizeres: Santa Cruz dos Enforcados. Isto feito pelo hábil e de bom gosto senhor Alexandre Paganelli”. As lendas e histórias sobre a Cruz dos Enforcados fazem parte de um passado distante, cobertas pela poeira do tempo dos avanços civilizatórios… Felizmente.
Obs: Romualdo Fontana, citado no texto, foi um antigo carpinteiro do município, e Alexandre Paganelli, um ator e diretor teatral que exerceu grande influência na dramaturgia local.

* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.