Pode ser tarde demais

O que podemos aprender com o atentado à escola no interior da Bahia? É possível prever o caos?

Anna Luiza Calixto

“Ele era um aluno muito calado. Se expressava poucas vezes nas aulas, mas fazia as atividades escritas com muito capricho. Sempre sentava no mesmo lugar, e se relacionava sempre com os mesmos colegas que estavam próximos a ele. Não era um aluno de muitas amizades, interagia pouco e a interação era sempre com os mesmos colegas” – as aspas pertencem a Aline Herok, professora do adolescente de 14 anos responsável pelo atentado à mão armada no Colégio Municipal Eurides Sant’Anna, em Barreiras, no oeste da Bahia, escola que divide sua gestão com a polícia militar.
Filho de um subtenente aposentado da polícia militar que havia se mudado de Brasília para a Bahia recentemente com sua família, o jovem utilizou no ataque a arma que ficava escondida embaixo do colchão de seu pai. A escola não dispõe de câmeras de segurança, o que dificulta as investigações, mas através das imagens captadas por estudantes e vizinhos da unidade escolar é possível identificar nuances da atrocidade.
Na manhã da segunda feira, 26 de setembro, o adolescente foi até o local do crime com a arma e um facão. As testemunhas disseram que ele não parecia ter um alvo específico, porque já entrou atirando. Por falta de técnica e experiência, a arma falhou duas vezes – tropeço que permitiu a fuga de parte dos estudantes, mas não de Geane Brito, jovem de 19 anos com deficiência física que se locomovia através de uma cadeira de rodas e não pôde reagir.
A aluna dizia querer ser policial militar para salvar vidas. Mesmo com problemas de oralidade, interagia bastante com os colegas e, segundo uma amiga, dizia gostar muito da escola por ser “um lugar onde as pessoas não podem fazer coisas erradas.” A paralisia cerebral não impedia a estudante de ser participativa, empenhada e querida com todos ao seu redor.
Tentando fazer o maior número de vítimas quanto fosse possível, o adolescente – cuja identidade não pode ser revelada – conseguiu esfaquear e degolar a jovem, que sequer conhecia o aluno por estudar em um turno diferente. Fica evidente que o adolescente se aproveitou da dificuldade de locomoção dela para torná-la vítima.
O delegado Rivaldo, responsável pelo caso, destaca os comentários racistas publicados pelo adolescente responsável pelo crime Internet, além do comportamento atípico. Introspectivo, o aluno costumava usar roupas pretas, falar pouco e não ter muitas amizades. Segundo os professores ele não apresentava um comportamento violento e tirava boas notas, mas sentava-se sempre no mesmo lugar, conversando com os mesmos colegas. Em casa, costumava cuidar do tio, também cadeirante.
Em um país cujo presidente deseja anunciadamente armar a população, cabe observar que o responsável pelo adolescente tem toda a documentação que regulariza a posse da arma – mas isto não impediu o atentado de acontecer, impediu?
Que o crime ao qual o policial aposentado se refere é uma crueldade arbitrária e covarde não preciso abrir para discussão. Mas é interessante observar a conotação preconceituosa, com traços neonazistas, presente em publicações recentes do autor do atentado em suas redes sociais.
“Saí da capital do Brasil para o merdeste, e nunca pensei que aqui fosse tão repugnante. Lésbicas, gays e marginais acham que são dignos de me conhecer e de conhecer minha santidade. Os farei clamar pela minha misericórdia, sentirão a ira divina.” – escreveu o adolescente.
“Malditos vermes horríveis, vocês me causam vergonha de ser humano, como consequência, tornarei-me um símbolo de apatia, de punição e de que há resistência. E nem mesmo seus bebês infectados com seus bárbaros ensinamentos, serão poupados, pois sou ou o contrário da misericórdia.” – acrescentou.
É difícil até mesmo transcrever este tweets e imaginar que a família em nenhum momento acompanhou o mau uso do adolescente das redes sociais. Sem usar um recurso discursivo maniqueísta, que aponta única e exclusivamente os pais como corresponsáveis, devo dizer que a escola jamais desconfiou que havia no comportamento do estudante indícios de um atentado em potencial, com risco iminente de acontecer a qualquer momento, dependendo de um deslize na atenção do portador da arma – que também não esperava que isto fosse acontecer. Em nota, a prefeitura municipal de Barreiras classificou o atentado como uma “tragédia inimaginável.”
“Nós vamos tentar monitorar essas redes sociais, os alunos, com as secretarias municipais e estaduais de educação, para elaborar estratégias, para que a gente consiga entender a mecânica desses crimes e evitar que outros aconteçam”, falou o delegado.
Tarde demais para Geane, delegado. Por que estas ações articuladas e estratégicas só passam a ser organizadas pela polícia depois de verdadeiras catástrofes sociais que ceifar a vida de inocentes? A prevenção não deveria corresponder a políticas públicas que impeçam tragédias dentro destes moldes?
Para quem ainda pensa que o episódio foi excepcional, vale lembrar que o mestre do adolescente, o Henrique, foi imobilizado pela polícia e impedido de fazer vítimas quando invadiu uma escola com uma mochila na qual levava arco e flechas, facas, três bestas, munições, bombas de fabricação caseira e coquetel molotov. Ele estava inteiramente vestido de preto e foi autuado em flagrante por tentativa de homicídio qualificado por motivo fútil, com impossibilidade de defesa da vítima e contra adolescentes com menos de 14 anos.
Eu sei que o âmago coletivo parece clamar por vingança porque, como escreveu o filosofo francês Michel Foucalt, aprendemos precocemente a “vigiar e punir”, mas sabemos que a solução – se é que posso aqui ousar dizer que há uma – está na humanização das relações através de práticas de educação que nos libertam da competitividade opressora e da necessidade da velha sensação de pertencimento a um grupo que nos rouba a identidade e a personalidade espontâneas.
O que mais importa, talvez, neste momento seja não buscar desesperada e impulsivamente apontar culpados, mas sim buscar definir coletivamente responsáveis por prevenir novas chacinas que parecem ser desencadeadas em efeito dominó quando os meios de comunicação dão visibilidade aos crimes. Uma vingança que, no fundo, também é uma tentativa de se destacar na multidão. “Ei, eu existo. Olha o que eu posso planejar e fazer enquanto ninguém me vê.” Eu sinceramente espero que estas aspas não venham a pertencer a um novo homicida que, antes de ser culpado, também é vítima de nós mesmos.