Haverá poesia após Auschwitz?

Anna Luiza Calixto

Pautar os princípios civilizatórios que perpassam o tecido social infere que se pontue a questão da barbárie, a qual eles oferecem duro contraponto. A despeito da dicotomia presente entre a cidadania e a brutalidade, a tese desenvolvida pelo sociólogo alemão Theodor Adorno prenuncia algo mais profundo na dinâmica social humana: a desbarbarizaçãodos indivíduos – conceito que permeia as ciências sociais bem como a psicanálise – é um fenômeno construído coletivamente que apenas se faz possível mediante intervenção de cunho educacional. Em “Educação após Auschwitz”, Adorno elucida um pressuposto semelhantemente presente na obra do filósofo brasileiro Paulo Freire em A pedagogia do oprimido: a principal óbice para a desbarbarização do contexto contemporâneo não se dá tão somente no plano da violência física e institucional, outrossim no contexto do opressor hospedado no oprimido, verbalizando o padrão mimético de reprodução dos padrões de violência representados na dinâmica das relações de poder, o que assimila o papel de opressão ao status de detenção do poder.
A óbice acima aludida confere sentido na obra estudada durante o paralelo traçado por Adorno entre a questão e a observação pontuada na obra O Estado da SS de EugenKogon, em que o autor explicita tal relação complexa no campo de concentração em que o mesmo foi mantido por anos e em que muitos dos algozes eram filhos de camponeses, observando ainda que, no campo, o insucesso da desbarbarização foi ainda mais severo e tal reversão cultural deveria ser um dos objetivos educacionais de maior relevância.
Pensar a educação na direção contrária à construção social de uma nova Auschwitz é uma diretriz fundamental da cultura de paz, no prisma da qual o autor prenuncia a necessidade de revelar os mecanismos produtores dos indivíduos coisificados, capazes de cometer tais atrocidades. É plausível que acentue-se aqui a definição do sujeito social coisificado não tão somente como aquele que sai em defesa ou incorpora o viés ideológico do Terceiro Reich, bem como o indivíduo que naturaliza a cadeia violenta e seu desencadeamento calamitoso na esfera pública, assumindo a postura discursiva que ameniza o impacto social de Auschwitz e de episódios históricos similares, como quem considera o retrato sangrento deste período histórico o produto deturpado de movimentos radicalistas.
Preencher tais lacunas da civilidade moderna culmina, invariavelmente, em um processo educacional que, destaca Adorno, perpassa a formação humana desde sua primeira infância, em que os estímulos sociais primeiros tendem a ser enunciados no plano cognitivo, em que quaisquer reações contrárias ao padrão pacífico pretendido podem ser observadas e revertidas. A proporção psicológica das tendências violentas humanas não reduzem o profundo espectro social em que se dão suas (quase) inevitáveis dobradiças. Adorno pontua que a consciência social mutilada é absolutamente sintomática no que concerne à barbarização, pois configura a violência como substância nociva introjetada no tecido social.
Para refrear a barbárie, é implausível que se ofereça como contraproposta a educação pautada na severidade, impondo através do rigor e da disciplina máxima a construção (baseada na força) do homem modelo, tendo em observância que, conforme Adorno observa, produzir indivíduos duros e resistentes à dor, também tende a torna-los indiferentes a quaisquer dores alheias, coisificando-os. O autor pontua, ainda, que a autoseveridadeautoriza o indivíduo a exercer a severidade sobre o outro, “vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir” – o que soa cabalmente atual mediante a cultura da violência em recortes específicos, a exemplo da violência de gênero e a violência voltada à populações vulneráveis, não raro praticada em detrimento da opressão a plano individual da sexualidade, por exemplo. Adorno pondera que, se há algo que possa ser destilado na contramão da frieza é a compreensão dos pressupostos da mesma. Para assim contextualizar a proposição de Adorno, faz-se necessário delinear o parágrafo em que o autor aponta Auschwitz como muito além de um fator isolado ou uma aberração no percurso histórico mundial, pois – em sua observação – o fato de tal fenômeno violento ter ocorrido já atesta o bastante para traduzir uma tendência social imperativa.
“À medida que o direito do Estado é posto acima dos de seus membros, o terror já passa a estar potencialmente presente”. Assim, Adorno prenuncia a necessidade de preservar os direitos políticos no campo individual para evitar que, no advento do amanhã, seja oportunizado o massacre a um novo público, vulnerável e possível alvo de também novos algozes, reproduzindo as tendências perversas da cultura do ódio aqui discutidas. Aqueles que amenizam e corrompem o olhar histórico sobre as chacinas humanas, não apenas defendem o ocorrido, mas seriam capazes de colaborar e participar da mazela se assim ela mais uma vez se apresentasse – o que deve ser anunciado enfaticamente em tempos que não tão somente prenunciam bem como ilustram o cenário mais tendencioso e propício para a fecundação do caos: o nacionalismo ressurgente sobre o preconceito e assentado no caos em detrimento do bem da pátria. Que Auschwitz não se repita.