A nova era monocromática
Os riscos da invasão do conservadorismo extremo na vida de crianças e adolescentes, em pleno processo de desenvolvimento.
Por Anna Luiza Calixto
“É uma nova era para o Brasil” – inicia seu brado de conservadorismo a recém empossada Ministra dos Direitos Humanos Damaris Alves. A era a que a pastora e advogada faz referência, receita às crianças e adolescentes brasileiros que “menino veste azul e menina veste rosa.” Para além de reforçar o típico esteriótipo contra o qual a comunidade de direitos humanos brasileira – em tese, representada pela Ministra – luta diariamente; a declaração filmada subsequentemente à posse também fere preceitos fundamentais para o desenvolvimento saudável de nossos meninos e meninas, como a liberdade individual e o direito à autodeterminação digna; o que se distancia absolutamente da paleta de cores e gênero que habita o imaginário de Damaris e de tantos outros cidadãos que se posicionaram contra as críticas postas ao vídeo.
A representante oficial da pasta que, agora, designa-se à mulher, família e direitos humanos, repete a colocação polêmica em coro ao lado de colegas de gabinete, em comemoração. Vestindo azul durante a primeira reunião ministerial com o Presidente eleito (Jair Messias Bolsonaro, PSL), Damaris afirma veementemente que sua declaração não passou de uma metáfora, mal interpretada pelos veículos midiáticos e pelos internautas, que preencheram as redes sociais com charges, textos críticos e manifestações responsáveis por levar a hashtag ‘Cor não têm gênero’ a alcançar os TrendingTopics (assuntos mais comentados de toda a Internet).
A realidade é que, metáfora; eufemismo ou personificação, a figura utilizada na linguagem da nova Ministra tomou as discussões de parte substancial da primeira semana de 2019, ano que inaugura o novo mandato, conservador e de direita, em que tantas outras polêmicas tomaram nossas mesas; talvez como pano de fundo de algo muito maior, a exemplo da retirada da Comunidade LGBTI das diretrizes do Ministério liderada por Damaris, a partir de Medida Provisória (870) assinada pelo Presidente eleito, que exclui este público do foco de ações para promoção de políticas públicas, o que ameaça o sistema de proteção aos seus direitos, ao passo que são transferidos para uma diretoria subordinada à Secretaria Nacional de Proteção Global do Ministério. Subordinação de direitos fundamentais. Seria este o pontapé inicial ideal para o plano de ações da pasta que cuida dos direitos dos povos ameaçados, no país que ainda lidera o ranking mundial daqueles que mais assassinam transsexuais?
O que preocupa, a cada dia mais intensamente, pedagogos; psicólogos; sociólogos; mediadores sociais; conselheiros de direito e tutelares; jornalistas e parte reflexiva da sociedade, não se atém à infeliz declaração viralizada. A questão exposta é que, ao passo que os números alardeiam o caos anunciado no cenário da infância e da adolescência brasileira, a Ministra se pronuncia a respeito da vestimenta dos meninos e meninas, ameaçados pela fábula político partidária escrita a punhos do marketing e das duas palavras que inundaram nossos telefones, ‘fakenews’: “ideologia de gênero”, que parte do pressuposto de que a identidade de uma pessoa como homem ou mulher possa ser manipulada no ambiente escolar, por algum tipo de movimentação corrupta na via de mão dupla “governo | escola” por interesses ainda não esclarecidos pelos autores da “convincente” farsa, com trama que envolve plano obscuro nacional para corromper a inocência infantil, com livros didáticos jamais vistos ou distribuídos, mas que são caricatos e bem desenhados no imaginário social da parcela brasileira que elegeu a chapa.
A fome ainda bate à porta; a mortalidade infantil assusta; o abuso sexual incendeia as estatísticas; a erotização infantil, não raro, ganha os palcos e telas; o saneamento básico falta; a consciência social se distancia das reais fraturas a seres curadas; crianças trabalham em condições desumanas para buscar o sustento de seu lar e, cá estamos nós, discutindo a possível influência de cores na sexualidade de meninos e meninas que quiçá são incluídos na discussão – o que não nos surpreende, tendo em vista os moldes adultocêntricos em que se constrói a nossa bancada predominante.
Indubitavelmente, é também nossa responsabilidade cultivar o debate que é, verdadeiramente, necessário. E exigir da pauta política, que tenha consciência da pintura nada idílica do sofrimento de nossos meninos e meninas, que a nossa omissão ajuda a emoldurar. A futilidade quase estratégica de um discurso que estampa a masculinidade frágil e a educação de papeis de gênero que têm educado nossas meninas para depender do “primeiro sexo”.
Ferir não é educar. Tolir a espontaneidade também é uma forma de preconceito. Punir por ser é impedir de se tornar. Pecar pela má compreensão da força infantil de querer viver tudo o que é possível, em todas as cores, é o que pincela o conservadorismo monocromático que crê nos papeis de gênero mas é cético quanto à capacidade de nossos meninos e meninas de compreenderem quem são.
Nossas cores não definem nossa identidade, mas dizem muito sobre nós. Sobre a nossa maturidade em enxergar que a cor que vestimos pouco está relacionada à nossa identidade de gênero – e reforçar este tipo de corrente ideológica só coloca mais tijolos sobre a prisão em que educamos crianças e adolescentes que passam a conceber equivocadamente o que é ou não permitido. O conservadorismo, quando extremista e doentio, é cinza e empalidece nossos meninos e meninas, em seu crescimento e olhar sobre o mundo. O prisma de nossas perspectivas sobre a infância deve refletir as sete cores que deveriam colorir o que está em pauta: o desenvolvimento da vida dos meninos e meninas brasileiros.
Respeito. Amor. Consciência. Escuta. Proteção. Prioridade. Liberdade. Que, com estas cores, possamos pintar nossas crianças e adolescentes. Livres para estampar aquilo em que acreditam. Conscientes de si e perceptíveis ao outro. Sem precisar crescer e olhar o mundo sob os olhos cruéis de quem esqueceu-se da infância. Livres para ser. Olhemos para além das cores que tais crianças desejam vestir. Que nosso olhar, Ministra, esteja atento àquelas que não têm o que vestir.