A poesia nossa de cada dia

A arte é mais que possível durante conjunturas de caos e de ódio desenfreado: ela é necessária e urgente para que Auschwitz não se repita.

Anna Luiza Calixto

 

“Este é precisamente o momento em que os artistas devem ir ao trabalho. Não há tempo para desespero, não há lugar para a autopiedade, não há necessidade de silêncio, não há espaço para medo. Nós falamos, escrevemos, fazemos linguagem. E é assim que as civilizações se curam. Sei que o mundo está machucado e sangrando e, embora seja importante não ignorar sua dor, também é crítico se recusar a sucumbir à sua malevolência. Como o fracasso, o caos contém informações que podem levar ao conhecimento, à sabedoria. Exatamente como a arte.” (Toni Morrison)
Este é precisamente o nosso momento. O momento dos artistas, dos loucos, dos sonhadores, dos perturbados, dos aprisionados, das viúvas, das crianças. Sim, enquanto a cidade dorme – ou deveria estar dormindo – é o nosso momento. Devemos acordar a nós mesmos e ir ao trabalho dentro de nós. É hora de revisitar.
Para que seja consumada a sobrevivência da humanidade, a superação da barbárie é decisiva. “Como eu poderia amar o bem se não odiasse o mal?” – as aspas atribuídas à August Strindberg, dramaturgo sueco, são empregadas em meio à reflexão de que o combate à barbárie não pode se dar no plano hiperbólico de repressão a quaisquer moldes de agressão ou pensamento contrário à norma, pois não se trata do que ele nomeia como elogio à moderação pura.
Mediante a pandemia da Covid-19 e seu necessário enfrentamento através de medidas de caráter social e sanitário, tal como o distanciamento entre as pessoas, a educação também perpassa um processo de reinvenção. Não raro, as redes educacionais mantém sua prioridade conteudista ainda que em períodos tão duros que, em um país dessemelhante como o nosso, acentuam as desigualdades e as violações de direitos.
O momento requer coragem para construir um novo desenho de educação que busque amenizar as desigualdades e promover vivências, ao passo que atua ao lado da rede de proteção para assegurar a proteção aos direitos elementares das crianças e adolescentes do território. Quem tem fome não aprende. O rendimento não pode ter mais valor do que a integração da escola à comunidade local para compreender os espectros mais perversos da miséria e da violência. Se a educação está à distância, como fazer com que o direitos estejam por perto?
Pensar educação sem humanização é trabalhar a serviço da barbárie. A pandemia do coronavírus desvelou os aspectos mais cruéis da competitividade, do necroliberalismo e da coisificação social ao patamar de optar pelo avanço econômico à preservação da vida. A educação é ferramenta imprescindível para transmover este fluxo cultural perverso no percurso histórico, considerando e adaptando-se às adversidades e seus moldes contextuais. Construir e formar cidadãos e não notas e diplomas. Pensar a educação como democracia, liberdade e libertação das violências. Não há nada mais humano que isto. A educação como o próprio pensar.
Partindo de tais pressupostos, tem-se aqui o fio condutor ideal para a discussão do quão problemática pode tornar-se a educação pautada na lógica perversa da competitividade em nome do sucesso – ou de absolutamente todas as relações sociais assentadas na âncora do sucesso – pois a justificativa majoritariamente utilizada para validar tal modelo e prática educacional é a de que a sociedade funciona desta maneira e esta instituição pretende preparar seus membros para a vida lá fora, o que é não apenas perturbador, mas sintoma de uma vida lá fora adoecida.
Plausível e necessária, a discussão sobre o tecido social violento perpassa este olhar para a coletividade que compete por um assento ao sol e, fracassando neste processo infindo e extenuante que só faz alimentar a engrenagem primária do capitalismo e produzir lucro para uma parcela ínfima da população planetária, culmina suas decepções em violência, traduzida em práticas bárbaras que, neste panorama, são fabricadas pelo sistema.
Para que a sociedade renuncie à barbárie, esta também deve lançar mão da posição de autoridade – onde se toca no ponto nevrálgico de maior sensibilidade, porque deslocamos o teor da educação tão somente das crianças para seus responsáveis, produtos adoecidos do mesmo sistema bárbaro, que deverão renunciar à autoridade violenta, bem como os educadores, para dar espaço à autoridade válida no cerne da orientação do que Adorno nomeia como plantas de estufa, cultivadas para uma nova era da civilização, através da qual pode-se imunizar as crianças à brutalidade arcaica que funda sociedades e é responsável pela manutenção das estruturas de opressão perpetuadas em relações de hereditariedade viciosas, aqui rompidas.