Perdoa-os, eles não sabem o que fazem
O caso da menina Eloah e a morte da infância brasileira.
Anna Luiza Calixto
Imagem reprodução internet
Eloah ouviu um barulho estranho e foi olhar pela janela. Sua mãe gritou para que ela saísse de lá, sabendo que o Estado brasileiro violento não permite que uma criança veja o mundo com segurança pela janela de casa na favela. A periferia sangra em manchetes que perguntam o porquê. A menina foi a 15ª criança morta por bala perdida no Rio de Janeiro nos últimos dois anos (Fonte – ONG Rio da Paz).
A história dela ecoa a vida de Ágatha Félix, João Pedro, Maria Eduarda, Kauã, Alice, Emily, Rebecca… Meninos e meninas cujo futuro foi arrancado por tiros enquanto queriam o colo da Pátria Mãe Gentil sem o risco de nele morrer.
A pequena Eloah tinha cinco anos de idade. Nada que eu escreva aqui é capaz de dar a resposta que sua família quer e precisa agora. A comunidade saiu às ruas para se manifestar procurando justiça porque sabem que não é possível recuperar a vida dessa criança, sua risada leve e o brilho nos olhinhos de jabuticaba.
Ela estava comemorando o aniversário de sua irmã mais nova. Em outra rua, Wendel Eduardo, aos 17 anos, foi morto na garupa de uma moto. Seus familiares dizem que a polícia militar atirou mesmo depois dele erguer os braços em sinal de completo rendimento. Covardia e perversidade… É difícil adjetivar o inexplicável.
Futuro exterminado. Esse é o nome do mapa interativo lançado na última sexta feira em que é possível consultar informações sobre cada uma das vítimas, além dos locais e circunstâncias envolvidas em cada uma das mortes. Cecília Oliveira, diretora executiva do Fogo Cruzado, em entrevista ao Brasil de Fato, destacou a importância da memória dos mortos como instrumento de mobilização popular. “As pessoas precisam se importar”, ela diz. Um povo sem passado é um povo sem futuro.
Enquanto o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê proteção integral aos pequenos brasileiros, assistimos pelas telas a realidade que entrega os meninos e meninas à linha de tiro, num cenário absurdamente distante das letras da lei. Quem é prioridade absoluta no país em que crianças sangram dentro de suas casas sem possibilidade de defesa?
Diante dos fatos, faltam palavras e sobram silêncios. Resta a ausência de Eloah na sala de casa, a alegria da família, as perguntas curiosas, a roupinha de desenho animado, os cachinhos arrumados em um penteado no topo da cabeça. É impossível que eu sinta ou saiba dizer a dor dessa família, dessa e de tantas outras. Mas há algo que eu posso fazer, ou melhor, que eu posso me recusar a fazer. Minutos de silêncio. Porque enquanto uma única criança for vítima da violência policial nesse país, não poderemos ficar calados. Ao invés de minutos de silêncio, propomos a hora do berro. Um berro organizado que ressoa num barulho ensurdecedor por cada rua, viela e avenida do Brasil. Um grito que indaga o porquê de tanto sangue. O porquê desse alvo escancarado nas crianças e adolescentes pretos e periféricos. O porquê de tanto ódio e dessa licença anunciada para matar sem responder por isso. O porquê de tanto silêncio.
Eloah, espero que lá do céu você possa abrir as janelas e brincar sem ter medo da maldade dos homens. Que você brinque do que quiser sem se esconder dentro das quatro paredes de casa, porque nem lá dentro você foi protegida das balas do Estado. Pequena Eloah, você não morreu, virou semente. Vai crescendo dentro de nós e se tornando um enorme grito por justiça. Se posso te prometer alguma coisa, digo que ele não vai ser calado. Gritamos por você porque não fomos capazes de te salvar. Perdoa, Eloah, esses homens que se sentem deuses atrás da mira de suas armas, brinquedos de matar. “Eles não sabem o que fazem.”