Leopoldo Fregoli e o transformismo em Atibaia
Márcio Zago
O décimo segundo recital do Grupo Dramático Carlos Gomes aconteceu em outubro de 1904 no teatrinho do Mercado com a peça Ghigi, cujo enredo se passava em Roma -um típico drama histórico bastante apreciado na época. A apresentação marcou o aniversário de um ano de existência do grupo teatral formado por amadores locais e teve o próprio Alexandre Paganelli (ensaiador do grupo) no papel de Ghigi, além de Napoleão Maia e Antônio de Almeida nos papéis secundários.
Entre o quarto e o quinto ato, Aprígio de Toledo proferiu um discurso comemorativo a data que teve grande repercussão na cidade, enaltecendo a existência do grupo e estimulando sua continuidade, ressaltando a importância do teatro para a formação cultural do município.
Para o mês seguinte, em outubro de 1904, foi anunciado uma peça que fugia aos padrões normais das apresentações ocorridas até então. Tratava-se de um espetáculo de transformismo. Na época o transformismo cênico ganhava notoriedade com o italiano Leopoldo Fregoli.
O público local conhecia o ator pela fama alcançada através dos filmes produzidos por ele e projetados pelos exibidores ambulantes que circulavam por aqui. A peça foi escrita pelo próprio ensaiador Alexandre Paganellie fazia uma homenagem ao Leopoldo Fregoli. Ela foi concebida especialmente para a interpretação de Calixto Rinaldi, atuante integrante do grupo teatral também ligado à arte fotográfica, revelando-se mais tarde o primeiro fotógrafo de Atibaia.
Na peça estava prevista oito personagens, com vinte e cinco transformações em cena. Infelizmente não encontrei nenhum registro sobre sua real concretização. O transformismo ali representado consistia na exibição de um comediante que interpretava inúmeros personagens diferentes numa mesma peça. Um gênero de atuação que tinha como destaque a habilidade mimética e de mudança rápida dos trajes e adereços durante os espetáculos, que contavam geralmente com a presença de apenas um ator.
Essa habilidade artística apresentada por Leopoldo Fregoli impactou de tal maneira as plateias europeias que acabou sendo utilizada para nomear um raro distúrbio mental em que o paciente detém um delírio de que diferentes pessoas são de fato uma única pessoa, que muda de aparência ou está disfarçada: A Síndrome de Fregoli. Entre os inúmeros personagens interpretados nesse contexto, alguns eram do sexo feminino.
A interpretação do papel feminino por um ator masculino não era novidade nos palcos atibaianos, como bem descreveu Waldomiro Franco da Silveira no livro “História de Atibaia”, aliás, era fato bastante comum desde os primórdios do teatro. Mais tarde, nas décadas de 50 e 60, as produções LGBT+ ganharam espaço no teatro brasileiroe neste novo cenário às práticas teatrais do transformismo e do travestismo cênico ganharam novos contornos.
Leonardo Fregoli fazia tanto sucesso em Atibaia que o empresário Deoclides Freire tentou trazê-lo para cá durante uma de suas turnês pelo país, isso em 1912. Nessa época Deoclides Freire tinha acabado de inaugurar o “Pavilhão Recreio Cinema”, e utilizava seu espaço exibidor como teatro também. Embora a iniciativa tenha sido muito elogiada, ela provavelmente nunca ocorreu, uma vez que também não encontrei nenhuma informação a respeito dessa apresentação nas páginas do O Atibaiense.
Atrações (ou intenções) como essa atestam o pioneirismo de determinadas pessoas e segmentos artísticos em nosso município, e o teatro foi incontestavelmente um deles. As artes cênicas atibaianasse mostraram desde seu inicio atualizadas em relação ao que era apresentado nos palcos dos grandes centros urbanos e mesmo em outros países. Essa afirmação levou (mais de uma vez) empresários locais a cogitarem a construção de um grande teatro no município, ideia que nunca saiu do papel… Infelizmente.
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.