Festa na Capela

Márcio Zago

Em 1925, o jornal O Atibaiense publicou um artigo questionando a organização da Festa de Bom Jesus dos Perdões. Conhecida pelo turismo religioso, Perdões recebia inúmeros romeiros nas tradicionais festas que realizava – entre elas a Festa de São Sebastião e a Festa dedicada ao padroeiro da cidade, que acontecia (e acontece) em agosto.
Essa crítica, embora faça referência a uma cidade vizinha, demonstra a realidade de toda a região. Por ela, podemos imaginar a dinâmica que envolvia festas religiosas semelhantes naquele distante início do século XX, onde a peregrinação de romeiros oriundos de várias localidades era comum. De cunho estritamente popular, essas celebrações também ocorriam em Pirapora do Bom Jesus – SP e, de certa forma, na Festa das Brotas, em Atibaia.
Na programação da Festa de Perdões, o destaque era a novena, que incluía preces e cânticos (comandados pela Irmandade do Santíssimo Sacramento), que se estendiam pelas noites seguintes. Fazia parte da programação, além de missas solenes, a alvorada, procissão, sermão e as bênçãos que acontecia durante os quatro dias de festejo. Quanto à procissão, o jornal informava: “À tarde, pelas 5 horas, imponente e devota procissão percorrerá as principais ruas da vila que serão previamente ornamentadas.
Para maior brilho das procissões pede-se o maior número possível de anjos e virgens”. E arrematava: “O Revdo. Vigário pede a todos os seus paroquianos de Nazaré e de Perdões, bem assim aos piedosos romeiros, muita ordem e piedade para merecerem do milagroso Padroeiro, com toda a profusão, os seus divinos favores”.
O texto fazia referência (e tentava evitar) aos acontecimentos pouco edificantes que normalmente ocorriam durante aquele festejo, motivo da crítica do jornal. O artigo referia-se ao excesso de comercialização de pequenos objetos praticados pelos mercadores ambulantes que percorriam essas festas. Mencionava também a prática dos jogos de azar e, pior ainda, o descaso em relação ao controle das pessoas infectadas por uma doença bastante comum na época: a hanseníase, ou lepra, como era popularmente conhecida.
Quanto à venda de pequenos objetos, a crítica recaía sobre os comerciantes sírios que, segundo o jornal, faziam uma verdadeira exploração sobre a população humilde ao vender quinquilharias baratas a preço de ouro, além do excesso de barracas comerciais espalhadas pela festa. O artigo criticava também os “forasteiros” que vinham explorar os incautos com os jogos de azar. Eram jogadores profissionais, que sabiam convencer os desavisados a jogar e, muitas vezes, perder o pouco que tinham durante a festa, sem qualquer tipo de coibição. Essa reclamação também era frequente em relação à festa das Brotas que ocorria em Atibaia. Nela a repressão aos jogos não era frequente, oscilando de ano para ano, fato que dava “fama” à festa, atraindo os jogadores profissionais de várias regiões. O pior era em relação à “doença feia”, como diziam. A lepra é considerada uma das doenças mais antigas da humanidade, com relatos de casos que datam de 3.000 AC. Fortemente estigmatizada, a lepra até os anos sessenta era tratada com isolamento compulsório devido ao medo da transmissão.
No período da festa aqui tratada, “os infectados permaneciam (durante o dia) à beira dos caminhos, sentados, implorando a caridade dos transeuntes, e à noite comendo e bebendo nos mesmos utensílios”. O artigo concluía: “Tudo é horrível e pede um corretivo. Corretivo que redunde em caridade, caridade para os romeiros, caridade para os lazarentos (menção ao leproso Lázaro, que segundo a Biblia, foi curado por Jesus)”. E propunha: “É fazer como em Pirapora: proibir-lhes a entrada na vila, quer durante o dia, quer à noite, e determinar um lugar para o depósito das esmolas que lhes são destinadas”. Como se vê, embora justa, a crítica propunha uma solução fácil, que procurava esconder o problema, ao invés de solucioná-lo… Uma triste realidade deste nosso longo percurso civilizatório.

* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.