Bullying: é da nossa conta
O triângulo do ódio que reúne agressor, vítima e testemunha e a importância de nos unirmos nesse combate.
Anna Luiza Calixto
“Quanto antes aprendemos a plantar a semente da paz, mais cedo podemos provar os frutos do amor.” – com essa frase encerro o livro Por que Maria não vai com as outras?, no qual discuto o quanto é fundamental o enfrentamento ao bullying dentro e fora das salas de aula. O amor é o pilar fundamental da cultura de paz, ao lado da empatia e do respeito. Amar o próximo assim como você se ama, como nos ensina o mandamento, para que você não o ame a ponto de se anular, nem ame a si baseado nos excessos, desconsiderando o outro. A balança encontra seu equilíbrio quando amamos o próximo com a mesma medida com que nos amamos e nos respeitamos. Assim não tem erro.
O bullying é uma violência e compreendê-lo assim é o primeiro passo para deixarmos de banalizar seus impactos sobre a saúde mental das crianças e adolescentes que com ele sofrem.
“Na minha época ninguém ficava machucado assim por causa de uma piadinha, hoje tudo é bullying. Essa geração mimimi, querendo chamar atenção a qualquer custo. Filho meu não apanha na escola porque se apanhar, quando chegar em casa apanha de novo!” – esse tipo de fala distancia nosso discurso do sofrimento das vítimas, construindo uma verdadeira barreira entre nós, alicerçada no desrespeito e na invisibilidade das dores do outro. Sabe, é fácil rir da dor dos outros quando ela não dói na gente…
Esses pensamentos retrógrados reproduzem preconceitos e estigmas infundados. Através da caminhada que traço com o Projeto Bem me quer pelo Brasil, já encontrei tantos adolescentes praticantes da automutilação que, abaixo de um calor de mais de trinta graus, escondiam seus braços e pulsos sob um moletom quente para não revelar os cortes provocados pelo autoflagelo. Ainda há quem diga que o fazem para chamar a atenção, quando todos os sinais evidenciam que eles tentam se esconder do mundo e de todos, com vergonha do próprio sofrimento e da dificuldade que sentem para externá-lo.
Bullying é um problema sério baseado na difusão do ódio e da intolerância entre crianças e adolescentes. No contexto pós-pandêmico esse quadro se agravou intensamente devido à progressiva individualização desses sujeitos, num grau de uma quase compartimentalização na qual o outro, com suas divergências, não cabe. Ficamos tão profundamente imersos na nossa própria individualidade que nos afastamos até do encontro com a potência do outro; com a preciosidade do que suas diferenças representam.
A recuperação do bem-estar comunitário entre crianças e adolescentes só pode acontecer quando voltamos nosso olhar para além da bilateralidade entre agressor e vítima, enxergando também as testemunhas que não raro se silenciam diante do bullying devido ao medo que sentem de sofrer represália por se posicionarem. A criança que hoje é ensinada a não se meter onde não é chamada para não arrumar encrenca amanhã é o adulto que fecha os olhos para a dificuldade do outro. Se hoje a criança se cala diante do bullying, amanhã o adulto “não mete a colher” numa circunstância de violência doméstica, porque foi socializado para acreditar que “nada disso é da sua conta”.
O patrono da educação brasileira Paulo Freire antecipou que, em situações de opressão, devemos educar as crianças de forma a libertá-las para que amanhã seu sonho não seja o de ocupar o papel de opressor. Ou seja: em cada oprimido pode haver um opressor hospedado. É o que acontece quando não acolhemos as dores de uma criança vítima de bullying e, quinze anos depois, quando nem nos lembramos mais dela, suas dores revisitam a escola em forma de atentado, atirando simbolicamente contra a instituição que não enxergou seu sofrimento, fazendo sangrar meninos e meninas que nunca sequer o conheceram.
Plantemos a paz diariamente através do nosso exemplo como adultos para as crianças e adolescentes com quem convivemos. Nenhum deles deve ser responsabilizado ou punido pelos nossos preconceitos; nossos estigmas e nossa cegueira moral diante das urgências, como é o bullying. Bullying não é brincadeira e esse assunto cabe a todos e todas nós. Sim, é da minha conta e da sua também, porque toda criança é nossa criança e nenhuma delas deve ter sua infância assaltada pelo horror da violência escolar.