O Santo Cruzeiro

Márcio Zago

Diz a tradição que nos primórdios da história de Atibaia, a Praça Miguel Vairo abrigava uma forca, instrumento remanescente do tempo em que a pena de morte ainda vigorava no país. No entanto, não foi encontrado até o momento qualquer documento que corrobore essa afirmação. No início do século XX, o mesmo local abrigava uma enorme cruz, e diante dela uma modesta capela, conhecida como a Capela do Chico Leite.
A partir de 1904, um coreto também foi erguido, reafirmando aquele espaço como sagrado e de forte apelo religioso para boa parte da população. Esse local era nomeado então Largo do Santo Cruzeiro, e não mais Largo da Forca, como era conhecido antigamente. Nesse espaço acontecia todo mês de maio a Festa da Santa Cruz, celebração católica que ganhou grande projeção em Atibaia e região depois que Castro Fafe assumiu a zeladoria da capela.
Por volta de 1912, o jornal “O Atibaiense” publicou as primeiras informações sobre a necessidade e o interesse da elite local em construir um hospital público na cidade: o hospital da Santa Casa de Misericórdia. O local escolhido foi o Largo do Santo Cruzeiro. Com a nova ocupação, a tríade sagrada deixou de existir. O coreto foi destruído, e a cruz foi transportada para o lugar que mais tarde abrigaria a Vila de São Vicente de Paulo.
Quanto à igrejinha, um artigo de 1914 esclarece: “(…) A Santa Casa de Misericórdia de Atibaia está colocada no planalto da cidade, ocupando uma área de 6.120 metros quadrados, inclusive com todo o terreno murado, no qual também é anexada a igreja do Santo Cruzeiro.
O local onde está edificado a Santa Casa é o mais higiênico e mais pitoresco da cidade, de onde se descortinam as serras que circundam o município e também a belíssima Serra do Lopo, que é a ramificação da Mantiqueira (…)”. Em 1915, o prédio da Santa Casa estava pronto e foi solenemente inaugurado e depois abençoado pelo Padre Chico, graças à família Pires que assumiu toda a despesa da construção. Mas os tempos não eram nada fáceis.
A crise causada pela Primeira Guerra Mundial, que começou no ano anterior, logo se agravou. Pouco depois veio a pandemia da Gripe Espanhola, dizimando inúmeros atibaienses, incluindo 40% das crianças. Fatos que levaram boa parte da população a acreditar que a mudança da cruz era a razão de tanta desgraça. Era um castigo divino. Começou então uma articulação visando à construção de um novo Santo Cruzeiro. Em 1921, “O Atibaiense” publicou um artigo que informava: “(…) A Câmara Municipal concedeu, por escritura pública, uma área suficientemente ampla do terreno situado entre o grupo escolar e o cemitério, nas imediações da estrada que vai desta para Perdões, (para a construção de um novo Santo Cruzeiro).
Pretende-se que a cruz seja de ferro, bem como os instrumentos da paixão, e que em seu sucedâneo seja colocada uma placa de bronze ou mármore com os dizeres latinos que atestem aos vindouros os sentimentos religiosos e patrióticos de Atibaia (…)”. O termo “patriótico” se explica em razão da data em que foi inaugurado o novo Santo Cruzeiro: 07 de setembro de 1922. Neste dia, foi calorosamente comemorado em todo país o Centenário da Independência do Brasil. Por sugestão da “Comissão Executiva do Centenário da Independência”, órgão nacional encarregado da organização da festa, toda cidade com mais de 10.000 habitantes deveria inaugurar uma escola neste dia. Em Atibaia, entre as solenidades oficiais, não houve inauguração de escola, mas por indicação da Câmara Municipal o antigo Largo do Santo Cruzeiro foi renomeado Largo da Independência. A inauguração que houve foi do novo Santo Cruzeiro.
A cruz e os objetos de devoção, incluindo o galo que figurava no topo da cruz, foram feitos de madeira e não de ferro como previsto inicialmente. Para boa parte dos atibaienses, a inauguração do novo Santo Cruzeiro foi melhor que a sugestão da Comissão. A nova Cruz simbolizava as pazes entre a cidade e as representações divinas. Simbolizava a esperança da comunidade por um futuro melhor… Fato que, historicamente, se confirmou. Ainda hoje, embora com menor intensidade, o Santo Cruzeiro é um espaço venerado por devotos de todas as regiões e integra o percurso sagrado das congadas de Atibaia. Diz uma lenda local que no dia em que o mundo acabar, o galo postado no topo da cruz irá cantar, mas enquanto isso não acontecer teremos tempo suficiente de ver por muitos e muitos anos os congadeiros a seus pés durante os festejos de final de ano…

* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.