Da legalidade à realidade
Que distância percorremos entre pilares que deveriam ser justamente complementares?
Anna Luiza Calixto
Baseando-se a lei nas demandas reais, a vida em sociedade deveria se espelhar nas prerrogativas jurisdicionais como verdadeiros acordos de boa convivência. Por outro lado, um dos filósofos contratualistas, o inglês Thomas Hobbes, ficou conhecido por uma de suas máximas – “o homem é o lobo do próprio homem” – partindo do princípio que as leis existem para regular seres humanos que, à mercê de seus desejos e ímpetos, tornam-se ameaças em potencial uns aos outros, oferecendo perigo para o que se constituiu milenarmente como uma unidade coletiva, a sociedade.
No intervalo de uma mesma semana, vimos uma criança de 11 anos ser espancada publicamente por ter assustado um cachorro; dois adolescentes sendo apreendidos devido à identificação dos seus planos de promover um ataque armado a uma escola; uma menina de quatro anos sendo estuprada dentro do provador de um shopping em Manaus; câmeras de um supermercado em Congonhas flagrando uma situação de importunação sexual contra uma criança; o pai de uma criança autista morto por um homem que se irritou com o acionamento da buzina em Belo Horizonte, mais quatro crianças mortas por um deslizamento de terra…
Para ter acesso a estas notícias filtrei casos envolvendo crianças e adolescentes no Brasil na última semana. Sim, no país em que a Constituição Federal Cidadã de 1988 estabelece que crianças e adolescentes são PRIORIDADE ABSOLUTA e que, por isto, devem ser alvo da proteção integral da família, da sociedade e do estado. Além disto, o Brasil se tornou em 1989 signatário da Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente da ONU (Organização das Nações Unidas), que determina o interesse superior da criança em quaisquer pautas que envolvam sua vida. Ainda, em 13 de julho de 1990, foi promulgada a Lei 8.069|1990, popularmente conhecida como ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), legislação moderna que se tornou referência para diferentes países de todo o planeta por sua descrição enfática dos direitos fundamentais e a articulação de um sistema que assegure tais garantias para cada criança e cada adolescente.
O ECA aponta a necessidade de uma estruturação entre o tripé protetivo – família, sociedade e Estado – para tirar do papel a doutrina da proteção integral desta população etária. Aqui destaco a expressão “tirar do papel.” Sim, no papel somos realmente um exemplo a ser seguido. Temos inclusive o reconhecimento por sermos um país cujas legislações se adequam aos direitos humanos conforme as tipificações globais mais atualizadas. Mas, ao conversar com uma pessoa de fora da área em que atuo desde 2008, sei que eu ouviria “Tá, mas do que isto adianta? Lei boa no papel e realidade cruel?” – a cada dia que passa vou transitando da posição de quem responde para o lugar de quem, incrédulo, pergunta a si mesmo. “Para que servem as leis?”
Lamentavelmente, enquanto há um Estatuto que obriga a família, a sociedade e o Estado a garantir a vida, a saúde, o esporte, o lazer, a alimentação, a profissionalização, o brincar, a educação e a liberdade de ir e vir e se expressar, há uma família que violenta; uma sociedade que se omite e um Estado que não raro deixa de dar conta das demandas avassaladoras dos problemas estruturais que fundam as violações de direitos de crianças e adolescentes no Brasil. O que eu quero aqui dizer é que há crianças sendo abusadas sexualmente, tendo sua mão de obra explorada, apanhando de cinta, crescendo fora da escola e conhecendo o que há de pior no mundo. Estas crianças sequer sabem o quanto suas infâncias vivem distantes do que preconiza a Lei.
A Lei, por si só, é letra morta no papel. Quem dá vida às palavras, artigos, parágrafos únicos e capítulos é você, pessoa comum representada por uma sociedade civil organizada que se articula e luta pelo que acredita, exigindo o cumprimento das leis que, sim, têm força através do sangue que pulsa nas nossas veias brasileiras.
E estas leis tão preciosas não podem ser sinônimo de força apenas quando tem seu conteúdo pronunciado por um advogado em frente ao juiz, mas devem ter poder desde o momento em que uma criança sai do ventre materno e precisa do teste do pezinho até quando um senhor de idade se aposenta e deve acessar a aposentadoria para honrar seus anos de trabalho e validar um direito conquistado no timbre da lei. A mesma lei que parece nada valer aqui recebe a atribuição da mudança de uma vida e a garantia da dignidade da pessoa humana.
Leis existem para que lutemos por elas. Leis valem a pena quando honramos a história de quem sangrou os pés de tanto caminhar, cruzando os céus do país para bradar por quem muitas vezes não pode gritar por si. Nas periferias, praias, rodovias, casas, estradas, apartamentos, barracos, escolas, postos de saúde… A lei precisa ser lembrada. A lei precisa sair do status de desconhecimento e total invalidez e passar a ocupar nossas bocas, frequentar nosso vocabulário, fazer-se presente nas conversas e, como Hobbes antecipou, nortear nosso convívio social na contramão da barbárie, do caos e da violência. Ninguém representa sozinho a lei. A lei é que representa sozinha a todos nós.