A pandemia da Covid-19 tecendo o novelo da nossa barbárie
Anna Luiza Calixto
Para pensar a reatividade humana mediante a barbárie, Dante Alighieri escreve na Divina Comédia que “no inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise.” Aliado à tese denotada pelo sociólogo brasileiro Gabriel Cohn em seu ensaio “Civilização, cidadania e barbárie”, o pensamento dantesco prenuncia de maneira sintomática a conduta social durante o que ele nomeia como tempos de crise, sendo plausível a contextualização do exposto no que concerne à conflitos bélicos; revoluções urbanas e, o que é cabalmente contemporâneo, pandemias provocadas por vírus capazes de revelar a barbárie que preenche as lacunas da civilidade moderna.
A proporção pandêmica só faz acentuar a atmosfera atemorizadora que perpassa todo o tecido social, ferindo o conceito de civilidade observado pelo filósofo alemão Theodor Adorno e pormenorizado no ensaio de Cohn. Sob tal prisma, a civilidade diz respeito intimamente à capacidade dos sujeitos de relacionarem-se respeitosa e complacentemente – no sentido mais adequado da palavra. Ainda, tendo em atenção a posição de Adorno sobre o momento histórico específico para o enfraquecimento das convenções que norteiam as ações e o prelúdio de novos moldes para a individualidade, é possível vestir tal retrato histórico com a roupagem do quadro coletivo culminado pela pandemia do Coronavírus, família de vírus responsável por provocar infecções respiratórias, cujo novo agente, Covid-19, foi descoberto ao fim de 2019 após casos confirmados na China.
Não obstante, a pandemia em discussão paulatinamente deslinda uma forma de individualidade que aproxima-se, em determinadas nuances, do estado de natureza hobbesiano; tendência observada durante o período de isolamento na prática inescrupulosa de estoque exacerbado de mantimentos, superlotando os centros comerciais e esgotando medicamentos de primeira necessidade para parte da população. Tal faceta desvela-se também no espectro da irresponsabilidade social, o que versa desde a persistência relapsa de parte bastante expressiva das comunidades locais em frequentar praias, parques e demais centros de convivência coletiva; o preocupante protagonismo de notícias falaciosas na internet, que só fazem impedir o circuito das informações necessárias e verídicas para a contenção do avanço veloz da curva da pandemia, até a perversidade de membros das classes dominantes em manter seus funcionários de limpeza doméstica, motoristas e babás em suas atividades mesmo durante a quarentena, não raro defendida pelos mesmos em suas redes sociais.
“Está em jogo a capacidade dos homens de construírem conjuntamente o seu mundo”. Em síntese, a socialização das perdas no recorte brasileiro da crise provocada pela pandemia do Covid-19 dá-se no âmbito do Estado possessivo dentro da característica da busca pelo ator culpado pelo cenário de caos, a dificuldade de assumir popularmente as responsabilidades sobre o que é público, visto que ele não pertence especificamente a nenhum membro da sociedade, tendo como benefício de retorno, a proteção do seu direito à saúde, provocando maior adesão ao distanciamento social, ao passo que a população abre mão de parte de suas liberdades em detrimento do bem estar coletivo, analogamente ao próprio estado de natureza, conforme acima exposto. No espectro do estilo predatório, fica evidente a modalidade de ação do poder público que assenta-se sobre a prática punitivista por meio de ferramentas de encarceramento ou arrecadação para a máquina estatal.
“O cerne da questão consiste em contrapor responsabilidade à indiferença.”, Pautas de interesse mútuo de toda a comunidade planetária veem-se nas mãos de uma parcela minoritária, dessemelhante e poderosa da sociedade, de líderes econômicos preocupados com o proveito direto de seus movimentos, cujas articulações se dão em torno de seus próprios interesses pontuais; práticas que inferem consequências, em termos práticos, em todo o restante da comunidade que não participou da tomada de tais decisões e, não raro, sequer tomou ciência das mesmas.
Para aplicar o mote central da doutrina marxista no processo coletivo de contenção da pandemia do Covid-19, basta interpretá-lo à nível literal: pensar a totalidade sem perder os conteúdos que se desdobram em sua dinâmica interna própria. Pensar o combate a pandemia sem deixar de recortar os privilégios de classe nos planos de contingência em aplicação. Perpassando tempos de construção civilizatória, esbarra-se no questionamento atemporal de como a reprodução da vida pode ser defendida de um ponto de vista político, e a resposta está na conjectura da saúde pública e da responsabilidade totalizante de responder à imensa interlocutora, a humanidade, que nos responderá sobre a interpretação da experiência social: a barbárie não é filha da civilização, mas da indiferença. Permanentemente, discutir a cidadania em tempos de barbárie é uma das poucas, senão a única possibilidade, para caminhar em passos rápidos para os tempos de cidadania em que a barbárie será, puramente, um tema para discussão para além da práxis.