Extra! Extra! O que há de novo no Brejo da Cruz
Fique por dentro do que acontece neste pedacinho de Brasil no Catolé da Rocha, sertão paraibano.
Por Anna Luiza Calixto
Posicionada a quase quatrocentos quilômetros da capital paraibana, Brejo do Cruz acolhe treze mil brasileiros ao lado da Bacia do Rio Piranhas. Treze mil de nós, azuis e alucinados. O número tímido de habitantes da cidade de 137 anos versou entre picos e depressões desde sua fundação, uma vez que os cidadãos ali naturalizados hoje cruzam os céus do Brasil em busca do que sua terra não pode lhes ofertar.
Pisam e desembarcam nas capitais encharcadas de concreto e pegadas urbanas do Brasil, com crianças, gestantes, operários, homens e mulheres do campo. Encontram, depois da viagem carregada de sol e poeira, milhões de silhuetas que se misturam aos brejo-cruzenses indistinguível e sobriamente. A buzina, o outdoor (e outras tantas palavras americanizadas calibradas com rollse ations), a escada rolante e os anúncios ambulantes: compra-se ouro e estacione aqui.
Aqueles que permaneceram em solo árido se multiplicam em meninos e meninas também áridos, bebendo a luz; mastigando a luz; vestindo-se de luz; banhando-se e mergulhando na luz. Aos pés da Pedra da Turmalina – carro chefe das belezas da cidade – a criançada descalça é corada pelo mesmo tom da joia que dá nome à Pedra, a Turmalina: azuis. Cor fria como os corpos franzinos e entanguidos da molecada morena que alucina e desencarna, desencarna e alucina.
Tudo isto lá no Brejo do Cruz. Mas esta profusão de episódios não é exclusiva do território do Brejo. Se assim – em singular consonância – eu descrevesse quaisquer outros povoados no arredor da cidade e ainda mais além no norte e nordeste do mapa brasileiro, quantos verbetes eu mudaria neste texto? Que mais haveria para o explorar de manchetes inclementes e perversas como a que te trouxe a este relato cansado? A novidade, a notícia é que a preciosidade maior não pertence à Turmalina, mas à vida (palavra que há muito não se vê estampando o cabeçalho das principais gazetas das bancas brasileiras) dos brasileirinhos perdendo seus tons de verde e amarelo para a apatia cinza da fome e da miséria.
Àqueles que partiram, resta a normatização opressora e nada silenciosa dos automóveis e comércios, dos ônibus aos quais falta até mesmo tempo para estacionar nas rodoviárias enquanto sobem os passageiros, em formas mil. Dentro desta enxurrada de bolsas e chapéus, sacolas de compras e sapatos surrados, estão os pés dos retirantes do Brejo do Cruz, buscando assento e ar, janelas abertas e rostos letárgicos nos vidros.
Os preferidos dos tabloides atiram, em revolta, pedras em automóveis e edifícios – estilhaçando a sensação de lar que a metrópole falha em propalar. Outros – absorvidos pelo abatimento e pela exaustão das ruas – tem seu sustento tirado do próprio corpo enquanto passeiam nus. Estatísticas, resultado da política nacional de migração, estão roubando nossos empregos e ao (quem me dera) fim de tantas falácias letais, são sangue nas calçadas e vítimas de crimes de ódio – senão populares, institucionais.
São milhões, somos nós. Eletrizados, cruzam incorpóreos o asfalto como bilheteiros, ambulantes, baleiros, pedreiros, jardineiros, faxineiras, guardas noturnos, eletricistas, bombeiros e babás. Estão nas praças, postos de saúde, departamentos de assistência social, agências de emprego, vagões de metrô e semáforos.
Postos em fileiras – cuja intenção é expressa assertivamente: arregimentar – são amestrados a esquecer do seu Brejo do Cruz. Do seu tempo, seu cheiro, seu som, seu toque áspero, árido, seu calor. Esquecem-se de sua infâncias, do tempo em que seus pés só conheciam a terra e suas bocas se nutriam de luz, do sol que aqueceu suas costas no caminho para a cidade grande. O Brejo da Cruz é a queda da misericórdia, da comiseração e do olhar sensível e necessário sobre o sangue que escorre do norte ao sul do Brasil, numa aquarela perversa.
Eles não vem de lá, eles vem daqui: o norte e o nordeste não são lá, são aqui, são Brasil. O Brejo da Cruz acontece não apenas quando nos esquecemos de quando éramos crianças e só comíamos luz, mas quando o concreto nos consome até esquecermos das crianças que ainda hoje alucinam, desencarnam, comem luz e viram Jesus.