Era uma vez a meritocracia
É possível validar uma corrida em que cada livre concorrente parte de um ponto, uma velocidade e um número de obstáculos diferentes?
Anna Luiza Calixto
“Nesta vida não queremos nada além dos Fatos, senhor; nada além dos Fatos!” – as aspas pertencem à obra Tempos Difíceis do romancista inglês Charles Dickens, representando em tom satírico o cidadão burguês pós revolução francesa, emblemático na figura do Professor Gradgrind, a plena caricatura do indivíduo entusiasta do capitalismo (sistema econômico que ascendia vertiginosamente no período retratado pelo romance): pragmático, utilitarista e avesso às extravagâncias da aristocracia, o antigo regime retratado pelo historiador Eric Hobsbawm no capítulo “A carreira aberta ao talento” da célebre “A era das revoluções”.
Pôr fim à aristocracia enquanto regime não equivale à erradicar a influência aristocrática, enquanto herança cultural que perdura nos hábitos desta nova camada socioeconômica que, mesmo resistindo ao conceito de nobreza de sangue, buscava ser assimilada pela sociedade tradicional; o que Hobsbawn evidencia ao discutir as peculiaridades do processo histórico desencadeado a partir do par de revoluções – Industrial e Francesa –, caracterizado pelo que o autor chama de carreirismo individual; as marcas de sucesso dos homens auto construídos, sem atribuir sua posição social e condição financeira ao sobrenome, mas ao trabalho duro e ao próprio mérito, palavra central para a burguesia europeia no período discutido.
Nesta nova sociedade, um camponês poderia ocupar um posto burocrático de servidor civil, o que lhe asseguraria a respeitabilidade de quem, como aponta Hobsbawm “carrega consigo a magia da autoridade pública.” Faz-se necessário colocar que, anteriormente ao nascimento do Estado liberal, para que um indivíduo pudesse ocupar um cargo semelhante, deveria ser descendente de ao menos quatro gerações de sangue azul, o que tornava o funcionalismo público estritamente elitista e excludente. Paralelamente, abre-se a carreira na educação e, Hobsbawm afirma, exercer o papel de professor era um emblema de prestígio social, mesmo enquanto profissão mal remunerada. Ainda, povos historicamente massacrados por uma opressão sistêmica, como os judeus, encontraram na revolução a oportunidade de assimilar-se à sociedade e surpreenderam-na ao despontar nas artes seculares, nas ciências e nas profissões.
A instauração do capitalismo industrial representa a ruptura com o sistema em que a posição socioeconômica de um indivíduo era determinada no momento de seu nascimento e embriona o homem que construiu a si mesmo, o parvenu, ilustrado na alegoria do Sr. Bounderby em Tempos Difíceis por Dickens: um banqueiro, comerciante, industrial que enriqueceu por suas próprias mãos e repete este trunfo ao ponto de tornar-se enfadonho. Mas quem bate ao outro lado da porta do sucesso? Na contramão da ideia de sucesso aberto a todos, há o peso daquele que não foi capaz de cruzar os umbrais do liberalismo demonstrando, nesta lógica perversa, “uma falta de inteligência pessoal, de força moral ou de energia”, condenando-os ao que o autor chama de herança histórica que os invalida eternamente.
Cabe contrapor a perspectiva de carreira aberta ao talento da mesma maneira como se olha criticamente para a tese de meritocracia contempora-neamente: é possível validar uma corrida em que cada livre concorrente parte de um ponto, uma velocidade e um número de obstáculos diferentes? O autor pondera que “o principal resultado social da abertura da instrução ao talento foi, assim, paradoxal.” – tal qual o sistema capitalista. Tal disparidade social é palpável nos códigos trabalhistas discriminatórios em que o trabalhador estaria sempre à beira da indulgência, implicando a vulnerabilidade social como fator motivador à força de trabalho, e, portanto, defendiam os empregadores: “sua pobreza será garantia de sua boa conduta.”
A possibilidade de ocupar o alto escalão social como fito criou um clima de insensibilidade à pobreza e à vulnerabilidade que contrariavam o princípio de igualdade perante a Lei, levando o autor a evocar os princípios malthusianos para ilustrar o cenário à época. A palpável dessemelhança no tecido social europeu era amortecida pela ideia de que o sucesso estava à mão de todos e, neste percurso, perde-se a convicção social geral trazida à luz por Hobsbawm: “A virtude não era simplesmente equivalente ao dinheiro.” A carreira estava aberta ao talento à medida em que “os himalaias que seus filhos podiam tentar alcançar”, nas palavras do autor, eram à muito custo escalados – e a absoluta minoria era quem contemplava seu topo.