A (des)informação epidêmica e a cultura antivacinas
Anna Luiza Calixto
Não é preciso ir muito além da linha do tempo brasileira para visitar a realidade de uma população que não conta com o método medicinal imunizante – com as vacinas – para combater doenças letais e epidemias severas. Uma caminhada histórica até o início do século vinte revela um cenário em que uma em cada cinco crianças morria de alguma doença infecciosa antes de completar 5 anos de idade. A expectativa de vida – não só no Brasil, mas a nível mundial – era nada razoável e, mais recentemente, na década de cinquenta as estatísticas ainda apontavam cem crianças mortas a cada mil habitantes. Em comparação com o ano de 2016, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) indicou que a cada – os mesmos – mil habitantes, tinha-se o óbito de quatorze crianças. Os avanços são indiscutíveis e as conquistas da medicina não só enfrentaram com muito êxito a mortalidade infantil, mas aumentaram a um patamar bastante satisfatório a expectativa de vida humana. Não obstante a todo o progresso médico e aos resultados transformadores que eles provocaram na vida em sociedade, parte substancial da população parece não se lembrar do quão cruéis eram moléstias como a varíola – considerada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) erradicada em 1980 –; coqueluche; rubéola e poliomielite.
Lutando contra a cura, o movimento antivacina baseia-se em teorias de conspiração aos “métodos invasivos utilizados pelo Estado para o controle da população” e em mitos há muito descartados pela comunidade científica que apontavam – sem quaisquer fundamentos médicos – que a aplicação da vacina em crianças seria responsável pela maior incidência do autismo, o que (por mais que soe insípido em razão de argumentos) levou muitas famílias ao pânico e ao discurso de que vacinar é uma escolha individual. Dados do Ministério da Saúde mostram que todas as vacinas destinadas a crianças menores de dois anos de idade no Brasil vêm registrando queda desde 2011, a exemplo da vacina contra a poliomielite, cuja cobertura no país era de 96,5% em 2012, mas em 2018 dados preliminares apontaram que o alcance desta mesma vacina foi de 86,3%. Poderíamos considerar que, ao sensibilizar a população sobre a aplicação de vacinas na infância e tornar o tema alvo de insistentes campanhas, o Estado estaria violando o direito individual de escolha, estilo de vida e hábitos saudáveis ou não? Faz-se urgente pontuar que a vacinação é um pacto coletivo (portanto, de ordem social) para a erradicação de doenças. Escolhas de impacto exclusivamente individual devem, sem dúvidas, ser alvo de preservação e reserva. Alimentar-se de forma saudável ou não, ingerir medicamentos ou não; praticar exercícios os não… Recomenda-se o que é mais benéfico, mas não há campanhas de natureza governamental para mobilizar as pessoas a praticarem mais esportes – este é um caso de ordem individual. Ao invocarmos a discussão sobre o movimento antivacinas, a pauta vai para um patamar coletivo – o que significa que a sua escolha de não vacinar uma criança de cinco anos de idade, por exemplo, pode contaminar – na Escola ou no parquinho – um bebê de seis meses de idade que ainda não tomou todas as doses necessárias. Não vacinar quebra um pacto social e traz à tona doenças que já estavam erradicadas, levando à morte pessoas que podem não ter o mesmo acesso à saúde que a pessoa que fez esta escolha.
Para mérito de ilustração, tem-se o sarampo, que há muito não se estampava em manchetes de Jornal e, só em 2019, fez 1.388 vítimas (até agosto) e, em 2018, traz o número de 10,163 casos (Ministério da Saúde). A característica persistente desta resistência à vacinação no Brasil, é capaz de nos remeter à tempos outrora, quando – em 1904 – o Brasil foi marcado pela chamada (emblematicamente) revolta da vacina. Com medidas bastante imperativas, o governo Rodrigues Alves (aliado ao recém nomeado Diretor de Saúde Pública Oswaldo Cruz) adentrava as casas dos moradores do Rio de Janeiro – cujas ruas estavam tomadas de lixo e roedores – para aplicar-lhes vacinas à força contra a febre amarela e a peste bulbônica. O governo até mesmo ofereceu recompensas a cada rato que fosse entregue à administração pública local, o que levou muitos cidadãos a instituírem criadouros de ratos em suas casas – o que, quando descoberto, fez com que a medida fosse suspensa.
Políticos, militares de oposição e a população da cidade se opuseram assertivamente à vacina. A imprensa publicava impiedosamente contra Oswaldo Cruz, dedicando-lhe charges cruéis ironizando a eficácia do remédio. Agitadores incitavam a massa urbana a enfrentar os funcionários da Saúde Pública que, protegidos pelos policiais, invadiam as casas e vacinavam as pessoas. Os mais radicais pregavam a resistência à bala, alegando que o cidadão tinha o direito de preservar o próprio corpo a sua medida e, desta maneira, não aceitar aquele líquido desconhecido instituído por forças políticas tidas como autoritárias e ditatoriais.
O descontentamento contaminou o público maior e, somado aos problemas de moradia e ao elevado custo de vida, resultou na Revolta da Vacina – que provocou a alteração da Lei da Vacina Obrigatória, que se tornou facultativa desde então. Indubitavelmente, esta fratura histórica foi curada e, no período que estamos atravessando, o movimento antivacina tem tanto fundamento quanto o terraplanismo e a dúvida sobre a existência ou não de fenômenos como o aquecimento global. Não obstante ao avanço médico e científico academicamente, a era das mídias sociais e das falsas notícias vinculadas ao WhatsApp vem conquistando muitas famílias que alegam, sem pudor, que colhem tais informações “confiáveis” das redes de contato virtuais. É sintomático e alarmante: a internet dita comportamento e, na seara da saúde, este é um padrão muito preocupante.
Parte de uma falácia e se torna uma epidemia. Contagiosa e emergencial, a cultura antivacina é criminosa e coloca parte substancial da população em estado vulnerável e suscetível a doenças letais, em especial o público infantil. Quando uma parte da população deixa de ser vacinada, criam-se grupos de pessoas à mercê do caos, que possibilitam a circulação de agentes infecciosos. Quando eles trafegam e se multiplicam, não afetam apenas aqueles que escolheram deixar de se vacinar, mas também aqueles que não podem ser imunizados: porque ainda não têm idade suficiente para entrar no calendário nacional de vacinação ou porque sofrem de algum comprometimento imunológico. Enquanto a (des)informação for contagiosa, a perpetuação do retrocesso será endêmica – e o isolamento da comunidade médica e da população será um forte agente infeccioso que, na via contrária, poderia curar tantas mentiras letais.