Trabalhar só quando crescer – por que romantizamos o trabalho infantil?

As histórias que contamos sobre o trabalho infantil para acreditar na meritocracia.

Foto Vanva

Anna Luiza Calixto

 

Vou começar a Coluna de hoje lançando uma pergunta pra vocês: considerando que temos 8 milhões e 600 mil pessoas desempregadas no Brasil, por que temos 1 milhão e 900 mil crianças e adolescentes trabalhando de forma irregular e potencialmente perigosa no país?
Pois eu respondo a vocês: mão de obra barata por ser desqualificada; ciclo de pobreza nas famílias; hereditariedade viciosa que repete as mesmas violências de geração pra geração… Ah, tem mais um motivo! A gente romantiza DEMAIS o trabalho infantil.
As pessoas gostam de citar o economista alemão Max Weber quando ele diz que o trabalho dignifica o homem, mas se esquecem de que ele não estava se referindo a CRIANÇAS, sabe? O trabalho não traz dignidade para uma criança e, mesmo quando possibilita que o menino de 12 anos compre o celular de última geração, posteriormente faz com que ele pague um preço bem alto por isso.

 

 

O trabalho infantil tem uma história perversa no Brasil e no mundo. Eu, num ato falho, costumava mencionar sua origem fazendo alusão à revolução industrial que vitimou muitas crianças e adolescentes no chão das fábricas, sobretudo da indústria têxtil. Um dia, numa roda de conversa sobre o tema online, fui corrigida e ainda sou muito grata por isso. O trabalho infantil começa sua história no nosso país no próprio nascimento da nossa concepção de Brasil: na colonização exploratória que sofremos, tornando crianças e adolescentes indígenas, bem como aqueles oriundos de países do continente africanos, vítimas da exploração do seu trabalho e mão de obra, sendo muitas vezes escravizados e expostos aos contextos mais cruéis e degradantes quanto se possa imaginar. O escambo também envolvia a troca de objetos de suposto valor pela exploração do trabalho de crianças e adolescentes que não eram as portuguesas. E a história se repete. Como Marx antecipou: “ora como tragédia, ora como farsa.”
A partir disso construímos uma história de falácias, tentando vender para a população mais pobre a violência sob uma capa de verniz, chamando os meninos de empreendedores e incentivando a venda de seus serviços e, de um jeito ou de outro, da sua dignidade. O trabalho infantil é apresentado como uma solução para as famílias pobres, tornando meninos e meninas arrimos de seus lares, mantendo seus familiares minimamente alimentados e seguros.
Também não posso bancar a ingênua aqui e dizer que a culpa deve ser depositada nos ombros das famílias, porque o cenário é muito mais complexo que isso. Quando o artigo 227 da Constituição Federal Brasileira aponta como entes protetivos a família, a sociedade e o Estado, ele distribui também a responsabilidade por zelar pelos direitos de crianças e adolescentes. É preciso pensar na contrapartida social e identificar que outras opções damos pra essas famílias senão colocar seus filhos pra trabalhar desde cedo, uma vez que falta investimento nos programas de geração de emprego e renda, assim como em projetos de cultura/esporte/lazer e contraturno escolar.
Quando a sociedade se omite ou prefere comprar o que a criança oferece no semáforo, mas não denuncia, ela se torna cúmplice dessa cadeia exploratória. Digo isso porque, muito antes de qualquer um de nós ter nascido, o padre São Gregório de Nissa exclamou em um dos seus mais famosos sermões: “De que adianta alimentar um pobre se tu fazes outros cem?”, colocando à mesa uma análise visceral sobre nossa vaidade diante de alguém que pede uma escola – principalmente se esse alguém for uma criança – e a quase irresistível sensação de ter feito algo para ajudar; de ter feito verdadeiramente a diferença na vida dessa criança.
Uma criança com uma caixa de balas ou chocolates na janela do seu carro tem uma imagem comovente que nos leva a sacudir os bolsos para procurar qualquer trocado que nos tire aquela imagem da cabeça. Mesmo sabendo que os 3.50 que pretendemos investir no chocolate não vão ser capazes de tirar a criança do ciclo de pobreza ou miséria em que está inserida, não resistimos à tentação de satisfazer nosso ego e alimentar a nossa própria imagem da boa vizinhança.
A realidade é plástica e muda de acordo com as épocas. O trabalho infantil é violento e ainda há quem tente te convencer de que ele é uma oportunidade. Precisamos tomar muito cuidado para não cair nesse conto do pescador de que quanto mais cedo você começar a ir pras ruas vender o seu peixe, mais cedo você estará num patamar mais alto… O capitalismo não funciona assim, nunca funcionou e dificilmente funcionará um dia.