A embaixada
Márcio Zago
Nas duas primeiras décadas do século XX a embaixada era parte integrante das performances das congadas de Atibaia. Manifestação extinta desde os anos oitenta, a embaixada configurava-se numa representação dramatizada de teor guerreiro, onde, através de versos e improvisos travava-se uma luta simbólica entre um rei e um general.
O teatro popular se dava nos dias de festas, a convite dos festeiros e demais pessoas que recepcionassem as congadas para que a embaixada ocorresse na porta de suas casas. Na coreografia o rei ficava sentado numa cadeira, tendo ao lado o príncipe. Os demais congos postavam-se em volta formando uma roda no centro. No outro extremo ficava o general.
Entre os personagens estava o rei e seu embaixador (o emissário do rei), e o general e seusecretário (o emissário do general). A função dos emissários era levar o recado ao oponente num trajeto realizado de forma dançada e o recado era dado em versos: “Aqui venho general/neste tão grave momento/em que vosso regimento/um solo sagrado invade/um povo civilizado/não aceita humilhação/este caso complicado/eu ponho na vossa mão”. O general dá ordens ao secretário que também sai dançando: “Ó meu nobre secretário/vá dizer pr’aquele rei/que sempre foi meu fadário/resolver tudo por mal/diga mais ao pobre rei/que seu povo há de sofrer/que todo solo invadido/ficará em meu poder”. E assim era travada a luta, de recados “poéticos” de lado a lado, onde ficava clara a arrogância do general, adepto da guerra, e a supremacia do rei, que simboliza a humildade e a sabedoria. No final o rei vencia, poupando seus súditos e concedendo o perdão aos derrotados, ocasião em que todos cantavam, não a vitória, mas a grandiosidade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Esta manifestação despertava bastante interesse na população, embora visto com reservas pela sociedade elitizada da época. Numa crônica de 1907 surge a descrição de uma embaixada, mas em tom pejorativo: “(…) Eu vi as congadas: meia dúzia de absintos (falsos, já se vê) armados de uns espadagões de…pau, rolando as pernas num endemoniado coxaquelê de pele mal esticada.
Eu vi: abriam alas, numa extremidade o rei, um pretalhão coberto de um manto azul…sem estrelas, na outra o embaixador, chapéu de dois bicos a calções a Luiz XV. Os dois magnatas disputavam. Dizia o embaixador: “Vá-se embora, rei congo/Nariz de tromba de anta…/que comigo ninguém pode/Porque eu mato, esfolo e como!”. E o rei: “Atrevido embaixador/Eu sou rei pra toda vida…/Se você me amolá mais/Eu mando lhe dar uma surra!”. E o duelo poético ia num crescendo espantoso. O embaixador: “Por esta minha espada/Lhe mando dizer que fico!/Não tenho medo de rei/Com cabeça de burrico!”. O rei, tão escandalosamente ofendido, na sua majestade de …papelão, levanta-se, floreia no ar a sua espada de…lata, e volve carrancudo, irado, majestático e solene: “Atrevido embaixador/Com a minha espada na mão/Eu lhe digo em temor/ Seu cabeça de leitão!”. Palmas arrebentam.
O rei manda buscar o príncipe, investem ambos contra o embaixador, a traição, tomam-lhe a espada. Há um desespero de comédia, com litanias de rufos e tambor. E os versos seguem, num choro magoado até que o embaixador retorna a sua espada e …põe-se, de novo, em pé de guerra. E diz: “Rei congo dos meus pecados/Agora que eu quero ver…/Enquanto não te tirar as tripas/Não durmo com sossego!”. Segue-se um combate, com tomadas de bandeiras e tiros de língua.
Fazem as pazes, afinal, e a congada segue adiante, a repetir as mesmas cenas e os mesmos versos. Isso é a congada!” Extinto há mais de quatro décadas a embaixada representou a riqueza e a inteligência do povo simples traduzido na mais pura e singela representação simbólica do conflito humano universal: A luta entre o bem e o mal. De beleza incontestável a embaixada perdurou por muitas décadas e só viu, quem teve olhos para ver.