A revolução começa em casa
O cotidiano pode ser revolucionário quando o privado é político.

Anna Luiza Calixto
Dizem que política é o que acontece lá fora: nos gabinetes, nas assembleias, nas ruas. Mas a verdade é que a política mora também onde a gente toma café. Está no modo como a louça é dividida, no silêncio que uma mulher engole para não gerar conflito, na culpa que acompanha o descanso, como se o repouso fosse um crime.
É ali, no espaço mais íntimo, que se travam as batalhas mais decisivas e também invisíveis.
A frase “o privado é político” é na verdade uma lente de aumento, uma lupa. Essas aspas revelam o quanto nossas casas carregam o DNA das opressões do mundo. Porque as relações de poder não começam no Estado, mas na mesa do jantar. Na cama onde uma mulher se encolhe para caber no desejo de alguém. No espelho onde ela tenta gostar do que vê, depois de uma vida inteira ouvindo que deveria ser diferente.
A política está no cotidiano. Está no tempo que uma mulher dedica a cuidar de outros e no pouco tempo que sobra pra cuidar de si.Está no salário que não reconhece o trabalho do cuidado, nas escolas que tratam meninas e meninos de maneira desigual, nas leis que parecem ter sido escritas por quem nunca lavou um prato. Está também na resistência: quando ela se recusa a reproduzir o que aprendeu e decide romper o ciclo, viver de outra forma.
Falar que o privado é político é admitir que o pessoal nunca foi neutro.Não há afeto puro quando o gênero, a raça e a classe se infiltram em tudo o que somos e fazemos.
Mas há potência, sim, em transformar essa consciência em gesto: em reeducar os afetos, em partilhar responsabilidades, em aprender que amar não é se anular. Essas discussões incomodam porque nos obrigam a olhar para o dentro. E o dentro tem sido o lugar da negação.
Hoje, a cada conversa sobre consentimento, cada desabafo nas redes, cada mulher que decide sair de uma relação violenta ou simplesmente deixar de se desculpar por existir, o velho muro entre o público e o privado se racha um pouco mais.
E é aí que a mudança acontece: nas rachaduras. Quando a vida de uma mulher deixa de ser uma história isolada e se revela parte de uma estrutura que precisa ser desmontada.
“O privado é político” é, no fundo, um convite à coragem e a admitir que liberdade exige incômodo e que às vezes o incômodo mora justamente onde achávamos que havia paz.
Quando uma mulher questiona a divisão do trabalho doméstico, ela faz política.Quando ensina uma criança que meninos também choram, quando se permite descansar, quando se recusa a servir, quando se escolhe inteira… ela faz política.Porque toda escolha que desafia o que nos disseram ser “natural” é uma escolha política. Se fere, não tem nada de normal.
O privado é político porque é dentro que o sistema se alimenta ou pode morrer de fome. Nem sempre é preciso um púlpito para se exercer o poder da voz.Basta uma mulher dizendo: “aqui, não mais”.


