Religião e cultura nas primeiras décadas do século XX em Atibaia
Em Atibaia, eventos como o Natal, Semana Santa, Dia de São João Batista e outras celebrações católicas eram oportunidades para apresentações da modesta classe artística local.
Márcio Zago
As manifestações culturais nas cidades interioranas nas primeiras décadas do século XX foram fortemente influenciadas pelo calendário religioso. Em Atibaia, eventos como o Natal, Semana Santa, Dia de São João Batista e outras celebrações católicas eram oportunidades para apresentações da modesta classe artística local.
As bandas musicais desfilavam pelas ruas, corais participavam dos ritos litúrgicos e manifestações populares, como as congadas, caiapós e outras, também encontravam espaço para expressão. Esses festejos, por serem momentos importantes de convivência social, atraíam diversos artistas de outras regiões, que vinham comercializar sua produção ou se apresentar, garantindo assim seu sustento.
A partir da segunda metade dos anos trinta surge uma organização espirita de linha kardecista em Atibaia, o Centro Espirita Verdade e Luz, local onde o maestro Pedro Hilário de Vasconcelos organizou um grupo teatral, ofertando aos interessados um curso de música. Mais tarde, nos anos cinquenta,o espaço intensificou sua ação cultural influenciando a modesta produção cultural da cidade ao abrigar em seu pequeno espaço as apresentações teatrais e musicais dos artistas amadores locais. Apesar da hegemonia católica, o espiritismo kardecista ganhou aceitação na cidade, muito por influencia do casal Constante e Electra CensiBentran.
Em 1939 o jornal O Atibaiense informava que o Teatro República receberia uma conferencia onde seriam tratados os princípios da imortalidade decodificada pelo missionário Allan Kardec, fato que demonstra a aceitação por parte da sociedade ao espiritismo kardecista. Mas não era assim com todas as religiões. No mesmo jornal, uma matéria intitulada “Combate à Macumba” informava que a polícia havia abordado a proprietária de um centro espírita local, descrevendo-o como um “antro da macumba daninha” e associando-o a práticas de charlatanismo.
Apesar do nome do centro homenagear Santa Luzia, em um sincretismo que relacionava a santa com a orixáEwá, essa tentativa de aproximação não foi suficiente para evitar a discriminação. A matéria expõe o preconceito, que foi agravado na época por questões politicas contra as práticas religiosas de matriz africana, associando-as a práticas supersticiosas e deslegitimando suas práticas religiosas.
O sociólogo da religião, Lísias Negrão escreveu: “Com a Revolução de 30 e especialmente com o advento do Estado Novo, que se pretendia moderno e que, em nome da modernidade, perseguia os “arcaísmos”, a repressão contra estas práticas mágicas e cultos sincréticos não só recrudesceu mas tornou-se particularmente dirigida contra os cultos de origem negra: nas portarias dos órgãos públicos responsáveis pela moralidade e segurança públicas, as ‘macumbas’ e os ‘candomblés’ são nominalmente citados como alvos das proibições, ao lado das genéricas práticas de ‘feitiçarias, necromancia, quiromancia e congêneres’. Dá-se início a um intenso combate contra eles, com a apreensão de objetos rituais e prisão de pais e filhos-de-santo e a instalação de inquéritos e processos em que foram enquadrados como réus”.
Apesar das tentativas de repressão, as expressões culturais ligadas à religiosidade africana resistiram e continuam a influenciar de forma marcante a identidade cultural do país, preservando um legado que resiste ao tempo e à intolerância. Em Atibaia, as congadas existem há mais de dois séculos, e confirmam essa resistência.
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.