Dignidade menstrual como direito fundamental

A dignidade das meninas para além dos absorvente.

Anna Luiza Calixto

Eu tenho uma memória bem vívida de um dia, quando eu tinha quatorze anos, e minha família organizou um churrasco na piscina. Eu fiquei com minhas primas na casa e quando descemos para a piscina eu não entrei na água porque na época eu nunca tinha ouvido falar sobre coletores menstruais e usar um OB na minha idade parecia um sacrilégio. Minha avó estava organizando a mesa lá embaixo e me perguntou por que eu ainda não estava de biquini. Foi quando eu abri a boca e proferi a maior de todas as blasfêmias: “eu tô menstruada.” Meu avô quase se engasgou com a farofa. Se fosse um filme, o céu teria até ficado nublado, com trovões e corvos voando.
Brincadeiras à parte, eu só comentei que estava menstruada. Eu ainda não sabia do quanto muitas pessoas consideram isso nojento e perturbador, inclusive as próprias pessoas que também menstruam. Um pouco depois desse episódio eu assisti um vídeo da JoutJout Prazer que se chama “Tá achando ruim menstruar?” e nele ela conduz uma reflexão bem interessante levantando a seguinte hipótese: se eu derramo uma taça de vinho no sofá, as pessoas vão reagir de uma determinada maneira. Agora se eu me levanto e deixei uma mancha de menstruação no estofado, a reação é absolutamente outra. Seja sincera: você preferiria derrubar um pouco de vinho ou menstruar no sofá em um encontro romântico? Nem precisa me responder.
O fato é que desenvolvemos uma verdadeira ojeriza ao sangue menstrual e isso tem uma explicação histórica. Desde o livro de Levítico na Bíblia ouvimos que uma mulher menstruada é impura. Nesse livro ficamos sabendo que até o lugar onde a mulher se sentar durante esse período torna-se impuro. É uma consequência bastante previsível que a gente ache o sangue menstrual nojento e se sinta maculada durante esse período.
É muito importante que a gente oriente nossas meninas sobre o fato de que menstruar não tem nada a ver com sujeira ou impurezas, mas com um ciclo natural do corpo feminino, que nos prepara para a possibilidade da maternidade.
Na minha adolescência eu fui entendendo melhor o meu ciclo e fui ler e estudar melhor o tema. Aí me deparei com o Manual da Ginecologia Natural, resultado da experiência da Pabla Pérez San Martín, investigadora social e parteira tradicional. Esse livro me revelou um universo de mulheres que viam seus ciclos menstruais como potência. Descobri que há mulheres que regam plantas com seu sangue menstrual e até que alinham seus ciclos com as fases da Lua. Eu ia lendo e ficando com a maior cara de ponto de interrogação. Não aderi à maioria das práticas ali descritas, mas fiz as pazes com o fato de que eu sangro.
Mas vamos ao tema de hoje? Em 2021 foi publicado um estudo pelo UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas) em parceria com o UNICEF, chamado “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, e ele evidenciou essa questão no nosso país e relatou que 713 mil meninas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio e mais de 4 milhões não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas.
Foi diante desses dados que eu percebi que a minha possibilidade de descoberta da menstruação é um privilégio. Até mesmo meu incômodo com o fato de que eu tinha que esconder o absorvente na manga do blusão da escola para que ninguém reparasse e dizer para o professor de educação física que eu estava com problemas femininos, tudo isso já era parte de um bojo de privilégios de um direito que eu acesso e muitas meninas e mulheres não: dignidade menstrual. Quando eu digo muitas, quero dizer milhões, conforme a pesquisa que apresentei pra vocês.
Meninas são ensinadas a amarrar a jaqueta na cintura pra esconder a mancha de sangue em sua calça, mas não aprendem sobre fase folicular, ovulatória e lútea. Enquanto isso, muitas meninas não podem nem frequentar a escola quando estão menstruadas. Não tem acesso à dignidade menstrual no significado mais cru da palavra. E são essas mesmas meninas que muitas vezes não são instruídas sobre saúde reprodutiva e métodos contraceptivos, são aquelas que passam pelo processo da gravidez precoce em que não raro têm suas vidas colocadas em risco.
São violações de direitos encadeadas, veiculadas umas às outras. Mulheres e meninas que não tem o direito de viver um ciclo tão natural em paz.