Onde tem fumaça tem fogo – Como identificar os sinais da violência sexual infantil?

Estamos de olhos fechados para os sinais comportamentais de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual?

Foto ilustrativa Canva

Anna Luiza Calixto

O tema de hoje é resultado da minha experiência nas salas de aula brasileiras com as crianças e os adolescentes e é alvo de dúvidas toda vez que eu faço uma live ou dou uma palestra por aí sobre violência sexual infantil. A pergunta mais frequente tem sido como identificar possíveis casos de violência infantil através do comportamento dos meninos e meninas.
Hoje vamos falar especificamente sobre a violência sexual, e eu já trago um aviso logo de começo: esses sinais ou, como eu costumo chamar, manifestações sintomáticas, devem ser observados em associação um com o outro. Ou seja, quando eu menciono a vontade excessiva de fazer xixi ou a endurese – xixi na cama ou na roupa – não quer dizer que só esse sinal desassociado e descontextualizado signifique que a criança está sendo violentado sexualmente. Mas todo tipo de alteração repentina de comportamento deve ser observada com os olhos atentos dos adultos que convivem com a criança. Uma ruptura comportamental sempre é significativa, mesmo que não represente a ocorrência de uma violação de direitos.
O mais triste é quando conversamos com os familiares ou principais responsáveis pela criança e questionamos se eles observaram alguma mudança importante de comportamento da criança e eles nos respondem com cara de ponto de interrogação que não. Muitas vezes a realidade é que eles sequer conhecem a maneira como a criança costuma se comportar. Não necessariamente porque são relapsos e desinteressados no desenvolvimento da criança pela qual são responsáveis, mas muitas vezes porque em sua tripla jornada extenuante de trabalho, não tem essa possibilidade de acompanhamento presente e ativo do crescimento do menino ou menina. Se eu saio pra trabalhar quando o meu filho ainda não acordou e volto quando ele já foi pra cama, vamos conviver nos finais de semana. E quando o fim de semana é o único hiato temporal disponível para essa mulher gerenciar a casa, organizar a casa, fazer mercado, lavar e passar as roupas e ter o mínimo de descanso?
Sim, eu sei que existem famílias que ignoram os filhos sem que isso seja uma implicação socioeconômica, vivendo imersos numa tela de celular rolando infinitamente seu feed do Instagram ou assistindo vídeos do TikTok. O recado também é para eles.
Há cinco anos dei uma palestra no Ceará e conheci uma poetisa de 13 anos de idade que recitou uma frase que até hoje ecoa nos meus ouvidos: “quando a voz cala, o corpo fala.” É sobre esse desdobramento da violência sexual que falaremos hoje.
Não vou me ater nos sinais físicos mais autoexplicativos como sinais de infecções sexualmente transmissíveis; corrimento ou muco vaginal incompatível com a faixa etária; hematomas; gravidez; queimaduras; sangramentos e, é claro, a revelação espontânea da ocorrência dessa violência, falando por si só.
Mas vamos aos sinais e sintomas.
Quando uma criança que costumava ser tranquila e confiante aparece com medo de ir para determinados ambientes sozinha, como o banheiro, ou medo de ficar na presença de determinado adulto. Nem sempre isso aparece como medo, mas às vezes vem como uma rejeição repentina. Ao invés de dizer que é frescura e malcriação, bora ouvir essa criança e entender de onde vem essa nova reação a pessoas ou lugares.

Aproximação excessiva também pode ser um sinal. O menino vai pra casa dos avós e não desgruda do tio por horas, eles somem passeando por aí. Claro que pode ser só uma amizade saudável, mas não esqueçam que, conforme conversamos no último episódio, o agressor pode manipular psicologicamente a vítima e fazer com que ela dependa emocionalmente dele. Vale ficar de olho e manter uma relação de conversas abertas com a criança.
Todo e qualquer tipo de regressão na etapa de desenvolvimento merece nossa atenção: voltar a insistir em dormir na cama dos pais ou responsáveis; chupar o dedo; fazer xixi na cama; usar chupeta ou mamadeira, enfim… Retomou algum hábito que já havia abandonado? Vamos prestar atenção nisso.
Aparecimento de comportamentos agressivos contra animais, bichinhos de pelúcia, brinquedos ou colegas de escola, primos e irmãos… Autolesões como a automutilação também deve ser observada, não só em crianças, mas em adolescentes principalmente. Sabe aquele calor de 35º e a meninada na porta da escola de blusão puxado até o pulso? Tanto pode ser que não seja nada como pode ser que seja tudo.
Já os comportamentos hipersexualizados precocemente, manifestando total erotização infantil, devem ser investigados a fundo porque não necessariamente querem dizer que a criança está sendo abusada fisicamente, mas podem significar uma exposição precoce a conteúdo adulto ou pornográfico, até mesmo a rotina sexual dos pais ou a músicas e coreografias de conotação erótica. Sendo uma coisa ou outra, muitas crianças tentam introduzir canetinhas ou objetos cilíndricos em bichinhos de pelúcia, por exemplo.
Ou apresentam comportamento de masturbação compulsiva, por exemplo. E muita atenção aqui: há bastante diferença entre a descoberta saudável do próprio corpo e a masturbação compulsiva, tá? Toques estimulando a própria genitália muitas vezes acontecem com mais frequência depois que a criança descobriu que há prazer nisso. É aí que deve entrar a orientação parental sobre privado e público e partes íntimas. Agora, quando a menina começa a friccionar a vulva em quinas de mesa ou brinquedos mais rígidos de forma compulsiva, muitas vezes ao dia, a ponto de ficar assada ou ferida, devemos ter muita cautela. Como discutimos no último episódio, muitas vezes o abuso sexual apresenta à criança a sensação de ter sua genitália manipulada e essa condução irresponsável e violenta pode – entre muitas aspas – viciar a criança nessa experiência do prazer sexual, buscando sentir isso sozinha.
Um palavreado muito marcado por expressões eróticas ou de baixo calão também pode ser sintomático. Sabe aquela sensação “de onde esse menino tirou isso se ninguém fala essas coisas aqui em casa???” Sem recorrer à agressividade, podemos abordar a criança e questionar onde ela aprendeu essa expressão. Porque às vezes essas palavras surgem em momentos aleatórios, como quando a criança nomeia o próprio pênis ou vulva e acaba utilizando a expressão que o abusador utiliza.
Desenhos também são úteis nessa identificação. Se ao desenhar sua família a criança inclui no Tio Geraldo o pênis e mais ninguém aparece com sua genitália exposta, os traços meio que falam por si. A mesma coisa se os desenhos começam a ficar em preto, branco, cinza e marrom e anteriormente costumavam ser super coloridos.
Pesadelos também podem expressar bastante coisa, mas nem sempre a criança está disposta a compartilhar as figuras presentes nos seus sonhos mais sombrios.
Percebem que esses últimos sinais podem indicar qualquer mudança na vida da criança? Então conversem. Vou repetir o que tenho dito: será que se eu tenho medo de você vai ser pra você que eu vou contar algo tão delicado e confuso pra mim? Acho que não, né?