Jornal O Atibaiense completa hoje 123 anos
“O Atibaiense!”
Deixa-me, velho amigo, no dia do teu aniversário, falar-te um pouco a sós, muito de ti, algo de mim, nessa intimidade que os mesmos ideais perseguidos estabelecem entre os que se entendem e se completam. Tu és um jornal e eu pretendo ser um jornalista. Somos duas partes de um todo indivisível, tão perfeitamente unidas, tão estreitamente fundidas, que o jornal não pode existir sem jornalista, nem jornalista sem jornal. No momento em que transpõe mais um ciclo, quando os teus admiradores te enramam a fronte com mais um punhado de flores, desejo assentar-me ao seu lado e ao embalo dos aplausos com que te celebram, sonhar com o passado.
Na minha inesquecível infância passada entre felicidades, na paz beatífica de Campo Largo, tu foste a minha primeira ilusão de intelectual, o meu primeiro anseio de vir a ser mais tarde, um homem de letras. Mal sabia ler: quando chegavas pelo correio, com que loucura não te percorria as páginas todas, com olhos a transbordar de inveja, com a fantasia cheia de ideais, antevendo-me também um dia colaborador, com o meu nome em letras grossas no final de uma poesia, de um artigo. Dentre os teus escritores havia um que eu conhecia: Ângelo de Sylvio, meu professor de primeiras letras. Quanta admiração não lhe votava, só porque punha em tuas páginas uma porção de coisas impressas.
Os anos rodaram pela estrada da vida. Cresci. Enclausurei-me nos colégios. Puseram-me na cabeça mil tontices inúteis. Puseram-me na alma duas outras mil inutilidades e eu, quando me enfileirei entre os lidadores das tuas campanhas, trazia já a desilusão nos olhos cansados e uma grande revolta a impulsionar-me a pena sempre inclinada a ser espada, arma de ataques. Hoje que a imprensa diária da capital me escraviza, como a milícia aos seus soldados, penso em ti, “O Atibaiense”, em ti que foste o primeiro jornal a encher-me de ilusões, a primeira folha impressa que derramou em mim o veneno moderno da tinta de imprimir, que me alucinou com este entorpecente irresistível – os vapores do chumbo, na ultra veloz maneira das linotipos “Mergenthaler”.
Não te maldigo por isso; ao contrário, estendo-te os meus braços num grande e reconhecido amplexo de amigos. Os simples leitores de um jornal não poderão avaliar a significação destas expansões, que hão de ser claras aos olhos dos que já se queimaram à luz de uma redação.
Também para esses a data que hoje comemoramos não tem o alcance que lhe dão os que já se encontraram por detrás das máquinas, os que desde a manhã até alta madrugada estiveram a frigir os miolos para encher essas devoradoras e nunca saciadas folhas em branco, só esses é que sabem o que representa um ano a mais num jornal. É a vitória da mais moderna estratégia militar, em que um grupo mínimo de homens que pensam, vence e aprisiona a multidão desvairada e indiferente das ruas, impondo-lhe uma opinião, destruindo-lhe convicções bem antigas, despertando-lhe na alma ódios e amores, antipatias profundas ou devotamentos de heróis. Nem todos conseguem manter-se nesta luta por muito tempo. Daí o fracassar contínuo de empresas que pareciam sólidas, o ruir de diários a cuja frente havia valores inegáveis. E tu vens, “O Atibaiense”, há vinte e sete anos, atravessando crises, vencendo obstáculos, cada vez mais senhor de ti mesmo, indefectível, caminho de uma existência enorme. Em vinte e sete anos tu tens sido a voz que há celebrado todas as alegrias do teu povo, todos os progressos da tua cidade, posta no alto, bem no alto, para servir de arauto, de anunciador feliz do evoluir contínuo de Atibaia.
Por tuas colunas amigas passaram os alvissareiros da população: anunciaste aos moços o casamento deles. Deste a conhecer a todos que mais um berço havia aparecido na família atibaiana.
Comemoraste os aniversários da nossa gente e piedoso, tens sempre tido uma palavra de saudade para com aqueles que fecharam os olhos à vida. Quanta intimidade entre ti e o teu povo! A tua vida não é mais do que a história semanal da existência de Atibaia. No dia dos teus anos, é justo que te cumprimentemos, que sobre a tua cabeça esparjamos as nossas melhores flores. Eis porque, abrindo um parêntesis no labor noturno desta redação do “Jornal do Comércio”, esqueço-me do que se amontoa em minha mesa, para pensar em ti, para assentar-me, por instantes, ao teu lado, para cingir-te o colo num abraço. Não trago flores: tenho as mãos cheias de tinta de imprimir, que é o teu sangue azul, “O Atibaiense”! Não trago música; tenho os ouvidos a rumorejar de sons das máquinas, que são o grato rumor das ideias que se forjam. Não trago doçuras de voz: tenho à boca o trans bordar de palavras duras que o meu ofício de comentador diário de fatos exige. Trago-te, entretanto, um coração que é um oceano de carícias para os que venero.
Texto escrito pelo Professor Francisco da Silveira Bueno para o aniversário do jornal O Atibaiense em 1928. Professor Silveira Bueno foi catedrático de filologia portuguesa e fundador das cadeiras de árabe e hebraico da Universidade de São Paulo. Publicou dezenas de obras e colaborou com praticamente todos os jornais e revistas da capital paulista. Foi um dos maiores estudiosos e mestres do nosso idioma e colaborador do jornal o Atibaiense por décadas, enviando periodicamente artigos e poesias. Hoje, dia 17 de fevereiro de 2024, o jornal O Atibaiense completa 123 anos.