Quem pariu o patriarcado que o embale
Anna Luiza Calixto
Comecei a escrever esta Coluna olhando para as mulheres que vieram antes de mim e, respectivamente, para a quantidade de novos alguéns que trouxeram para o mundo. É inevitável – ou deveria ser – questionarmo-nos sobre quantos deles vieram sob o manto de desejo genuíno da paternomaternageme quantos foram acidentalmente trazidos para o mundo, porém com muito amor e, ainda, quantos são resultado indireto de fala como “E aí, casou já tem um ano e nada de bebê ainda?” ou então “Teve um já tem que ter outro que é pra diferença de idade não ser tão grande e eles fazerem companhia um pro outro!” Eu nem vou abrir aqui os parênteses em que eu falaria sobre os frutos dos estupros matrimoniais (ou seja, violência sexual dentro do casamento) porque esse é pano pra manga de outra Coluna.
A chamada maternidade compulsória – tipo de pressão social que empurra a função ‘mãe’ guela abaixo das mulheres – acompanha-nos desde a primeira infância. Não sei vocês, mulheres que me leem agora, mas quando criança eu tive pelo menos uma dúzia de bonecas bebês e algumas delas vinham com o plus de chorar e outras até mesmo de fazer cocô. Agradável, não? Lembro da primeira sexta feira do brinquedo da qual participei na escolinha onde eu estudava e conferi de perto a essência do patriarcado na infância. Enquanto eu e minhas amigas nos ocupávamos em trocar fraldas e ninar bonecas, nossos colegas meninos estavam salvando o mundo com bonecos de ação e apostando corrida entre seus carrinhos que prometiam alta performance e velocidade.
“Ah, Anna, isso é papo de feminismo de boteco! Boneca é coisa de menina mesmo…” – se você começou a esboçar um pensamento como esse, serei obrigada a te interromper. Cuidar de um boneco bebê é coisa de quem pretende no futuro cuidar de um bebê e, assim, na ludicidade encontra uma forma de aprender. Primeiramente, na infância ninguém tem que pretender ser mãe ou pai. Se tivesse que fazer essa escolha e isso justificasse as brincadeiras com bonecos que usam fralda e gritam, não vejo por que meninos não deveriam participar da brincadeira. Mesmo porque, eles podem se tornar pais e a tarefa doméstica de zelar por um bebezinho deveria ser natural para quem opta pela paternidade, assim como para as mulheres que se tornam mães.
Durante um hiato bastante significativo da nossa história como sociedade ocidental, não era usual o questionamento “Será que eu quero ser mãe?” e o condicionamento para a maternidade se reforça até hoje sob letreiros garrafais que nos indagam sobre quem cuidará de nós na velhice, por exemplo. Pelo amor dos filhos que você pode (ou não) ter, não tome essa decisão pensando em ter alguém ao seu lado na velhice para inverter a posição de cuidado. Se for essa a sua preocupação, invista na sua saúde e em exercícios físicos que te tornem um idoso mais autônomo e, quando estiver quase lá, adote um bichinho para te fazer companhia. Não coloque ninguém no mundo sob a sentença de dedicar-se exclusivamente a você no futuro.
Se é pra ser mãe, seja para proporcionar a alguém que ainda nem existe a oportunidade incrível de conhecer o mundo e ter suas descobertas guiadas com amor, respeito e responsabilidade. Seja através da gravidez biológica ou da adoção, o vínculo com um filho não é provisório, mas um laço transformador que não pode ser incorporado sob a roupagem de obrigação social porque suas tias estão te cobrando ou porque essa deve ser a única maneira de “segurar” o seu casamento. Não traga uma criança para o mundo colocando sobre os seus ombros a responsabilidade de salvar o seu relacionamento cujos problemas e questões são anteriores à existência desse ser.
Ter um filho deve estar associado ao seu projeto de vida, aos seus desejos reais e a sua perspectiva de amanhã. Muitos nos questionam “Mas você não tem medo de se arrepender de não ter filhos no futuro e ser tarde demais?” – eu aderia aos pesadelos com esses questionamentos até que li uma reflexão da jornalista e escritora Bruna Maia brincando com a inversão dessa lógica, porque quando você está grávida ninguém te questiona se você não tem medo de se arrepender disso no futuro. Deixem as mulheres em paz para tomar suas decisões em nome daquilo que querem e em que acreditam como o melhor para si mesmas, porque são elas quem vão conviver com os resultados dessas decisões ao recostar suas cabeças sobre o travesseiro à noite.
E antes que venham me questionar sobre relógio biológico, quero lembrar que o meu só tem cumprido a trágica função de me acordar cedo aos finais de semana, nada mais. Estamos cansadas de mitos e falácias disfarçados sob um verniz científico e acadêmico para legitimar ameaças patriarcais e machistas, ainda mais quando essas mentiras têm por objetivo reduzir os corpos femininos à máquinasde reprodução para produzir eleitores para o Estado e trabalhadores/operários para a indústria. Podemos ser e somos muito mais do que isso.
A paternidade no Brasil e no mundo sempre foi facultativa – basta ver o número de certidões de nascimento em que não consta o nome do pai – e isso pouco foi problematizado historicamente. Ser pai tem sido facultativo, mas ser mãe tem se tornado uma sentença nessa tessitura social tão solitária para mulheres e, sobretudo, para mulheres pretas e periféricas.
Tornar-se mãe não vai te fazer mais ou menos mulher, porque a sua constituição como ser feminino independe da decisão de colocar alguém no mundo ou não. Você já é completa e se a maternidade vier, que seja para te transbordar.