Entrudo de 1911: Lança-perfume pode. Água não!
Marcio Zago*
Depois do estrondoso carnaval de 1906, o ano seguinte foi indiferente para a pequena população de Atibaia: “Parece-nos que os festejos no próximo ano serão nulos em quase todo Brasil. As grandes sociedades carnavalescas do Rio de Janeiro e de São Paulo nada farão, visto a crise porque está atualmente passando o país”.
Em 1908, pela segunda vez (a primeira foi em 1906), dois carros alegóricos puxados à tração animal percorreram as ruas da cidade, além do Zé Pereira. Os carros traziam críticas à atuação da Estrada de Ferro no município. Nos anos seguintes o desinteresse voltou a reinar.
Somente em 1911 os festejos ao Rei Momo voltaram a ganhar importância. Ressurgiram os bailes à fantasia no Club Recreativo e o Zé Pereira voltou a percorrer as ruas da cidade. A alegria contagiante da pequena comunidade despertou a ira de Clodomiro Palhares, que escreveu um longo artigo no jornal “O Atibaiense” tecendo opiniões moralistas e preconceituosas sobre a festa: “(…) O que é o carnaval? É a festa da depravação! Nos três dias inutilmente empregados em festejar-se uma ridícula divindade, verdadeiros dias de loucuras e orgias, o homem esquece-se de sua alta missão, desprezando tudo que há de bom e nobre (…). Carnaval! Tu és a aviltação da dignidade humana, és cópia viva das satânicas orgias! Abaixo as máscaras! E acima de tudo a nossa dignidade”. A despeito do artigo a festa continuou.
José Antônio Silveira Maia, proprietário do jornal “O Atibaiense” na época escreveu: “(…) Há grande animação por parte da rapaziada, e não menos da parte das gentis senhoritas do nosso high-life. Fantasias a quantidade, músicas, flores, etc. Oh Ferro! Que calor! Ainda hoje, o grande e destemido general Bastão comandará as tropas, fazendo atroar a cidade com o ribombar do barulhento Zé Pereira. Urra! Viva a pandega!”.
Passado a festa outro artigo daquele ano informou como foram as festividades. O texto é contraditório. Se por um ladodiz que o carnaval não deixou saudades e nem despertou grande entusiasmo, por outro exaltava o arroubodos foliões: “(…) Os bailes carnavalescos correram com muitíssima animação, tendo-se nas mesmas diversas fantasias de gosto, tendo ganhado a medalha de “bom gosto” o nosso distinto amigo Sr. Benedicto Santos, que vestia um rico dominó de cetim amarelo, guarnecido por fino arminho branco (…)”.
Outra contradição do mesmo texto surge se comparado aos dias de hoje. Já se passaram mais de um século, tempo suficiente para justificar as drásticas mudanças dos valores éticos e sociais existentes. Tempo em que o lança-perfume era lícito e os brinquedos com água execrados pela sociedade:“ (…) A não ser o estupido brinquedo de entrudo, onde a agua tem preponderante papel ao lado das farinhas, graxas, etc.; nada mais víamos de notável neste carnaval de 1911. É pena que o lança-perfume fique quase esquecido nas vitrines dos negociantes, como aconteceu no carnaval que vem desaparecer. O lança-perfume, além de brinquedo inocente, é delicado a agradável, salvo quando os alvejadores escolhem os olhos para seu alvo, aí sim é algo nocivo.
Mas voltemos ao brinquedo de entrudo. É lastimável que não tenha sido proibido o tal brinquedo, que não pequenas e desagradáveis consequências arrastam. É necessário que se acabe de vez, o celebérrimo brinquedo com agua, para mostrar que somos um povo civilizado e digno do século em que vivemos. (…)”. O lança-perfume foi criado na França no finalzinho do século XIX e chegou ao Brasil no carnaval carioca de 1904.
Em Atibaia, alguns anos depois já integravam os festejos ao Rei Momo como mera brincadeira de espirrar perfume de uma garrafa pressurizada. Com sua popularização, o lança-perfume tornou-se símbolo do carnaval e de inocente passatempo passou a ser utilizado também como alterador de consciência, fato que levou a sua proibição na década de sessenta. Quanto à brincadeira com agua, é bom lembrar que a bronca da população para com osespirradores de taquara e as laranjinhas, brinquedos aparentemente ingênuos, tinham outra razão. Sabemos que nem sempre traziam agua em seu interior…
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.