“Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”
O ano só é novo se, com ele, renova-se a nossa capacidade de ser consciente de si e perceptível ao outro. Que ele não nos traga nada, mas esteja de braços abertos para tudo o que temos para oferecer. Mais do que um feliz ano novo: Feliz Ano Nosso.
Anna Luiza Calixto
“Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte.” Sobrevivemos à 2020 e, ao meu ver, esta é a prova indubitável de que Deus é brasileiro e anda ao nosso lado. À palo seco, com a cara e a coragem, principiamos o ano da Coluna Quem tem boca vai à luta, entendendo que 2020 não nos deixará sem marcas; sem aprendizados. Tampouco nos deixará sem esperanças sobre um novo ciclo que vem até nós, no badalar da meia noite e dia após dia. Para além das típicas listas de metas e desejos, não é nenhum segredo o que todos e todas querem para o ano que se inicia: que tudo volte à normalidade. O primeiro convite que esta Coluna estende a nossos leitores é repensar justamente se o que esperamos de volta, nossa normalidade, é (ou era) de fato normal ou desejável para nossos pares.
O que em nossas listas de metas nos leva a olhar para mais doze meses com esperança? Tudo o que supostamente desejamos para o amanhã diz muito sobre o que fizemos por hoje. Supostamente porque poucos destes desejos nos conduzem ao encerramento do próximo ano com uma mudança substancial; com mais esperança do que neste.
Deixamos 2020 com olhares distraídos que passeiam pelas manchetes de Jornal, que nos lembram incessantemente que, para além da pandemia de Covid-19 e todos os danos provocados por uma crise de saúde pública não raro traduzida em arena política durante um ano eleitoral absolutamente atípico, bem como todo o processo de reinvenção nas relações que atravessamos, o que chamamos de normalidade nunca foi, de fato, normal.
Prova indubitável disto é que, aqui no nosso Brasil, nos nossos quintais, a barbárie corre solta. Como caminhar para um novo ciclo, desejando renovação e prosperidade, quando 52 mil de nossas crianças foram violentadas sexualmente no último ano? (Dados: Ministério da Saúde) Não há novo normalse nosso costumeiro normal naturaliza a mão de obra de 1.8 milhão de meninos e meninas brasileiras. (PNAD|2020) Não se pode falar em caminhar para frente e esquecer dos males do último ano quando parte expressiva deles não fazem parte tão somente do dígito ao final de 2020, mas do sistema através do qual construímos a última década. Não pode haver progresso enquanto deixamos tantos pares para trás.
Madalena Gordiano, brasileira natural de Minas Gerais, passou 38 de seus 47 anos de vida sob regime análogo à escravidão na casa de professores universitários, rezando todos os dias porque acreditava que “Deus a ajudaria a ter uma vida nova”. A revelação deste caso se deu em dezembro de 2020. Na véspera de Natal, Viviane Arronenzi foi morta a facadas pelo ex-marido em frente à suas três filhas. Dezesseis facadas marcaram o episódio em que a juíza levava as filhas para passar o Natal com ele. Ela foi a quinta vítima de feminicídio apontada pelas estatísticas da semana de Natal. O Brasil registrou, durante o primeiro semestre de 2020, o primeiro aumento substancial em dois anos do número de mortes violentas, alcançando a nefasta marca de 25.712 assassinatos; ao passo que 3.181 destas vítimas morreram pelas mãos do corpo policial brasileiro (Anuário Brasileiro de Segurança Pública|2020). Enquanto escrevo esta reflexão, o Brasil versa entre o número de 191 mil mortos por Covid-19, aproximadamente dez mil mortes a mais do que aponto em minha última Coluna, publicada há menos de duas semanas, em um ano passado não tão distante quanto possa parecer. Muitas destas mortes potencialmente evitáveis através de uma administração pública responsável e fiel aos preceitos da medicina e da ciência, investindo mais do que nunca em ambas as pastas e prezando por sua máxima preciosidade: a vida da população que, durante estes duros meses de pandemia, muitas vezes lançou mão de zelar por si mesma. Feliz ano novo?
Antes que você vire esta página do Jornal ou simplesmente abandone este site para continuar com seu dia e impedir que estas “vibrações negativas” interfiram no seu abençoado (para não dizer privilegiado) início de ano, devo alertar que estes dados marcados por sangue também são teus. E são meus, não devo me enganar. Também pertencem a cada uma das pessoas que enviou para você correntes virtuais desejando a melhor sorte no próximo ano. A notícia estampada nesta Coluna é que o ano não muda se você não estiver disposto a mudar com ele.
Para além de nossos pedidos para 2021, há uma realidade repartida por todos e não podemos mudar de assunto tão rapidamente. As estatísticas não são tão somente números, mas pessoas de carne e osso e muita vontade de viver. A cada mulher violentada dentro do próprio casamento; a cada criança a quem falta o pão na noite de Ano Novo; a cada pessoa em situação de rua; a cada doente abandonado nos Hospitais; a cada prece silenciosa pedindo socorro há uma fechadura que trancamos para romper o ano em paz. Só poderemos desejar “Adeus Ano velho” quando empreendermos ações reais capazes de fazer com que “tudo se realize no Ano que vai nascer”. As notícias passam para dar lugar a outras e os fogos de artifício parecem anunciar algo novo, mas, em um ano que pede minutos de silêncio, devemos ressignificar esta meia-noite. Que a roupa branca não seja mais pura do que o que há em você. Feliz Ano Novo. Feliz Ano Nosso. Feliz todos novos. Para você, um Ano Novo em todos os sentidos – novo ano com menos retrospectivas e mais perspectivas.