Acreditem nas crianças: youtuber Jout Jout expõe retrato alarmante da violência sexual infantil no Brasil
Prioridade absoluta, mobilização social, sintomas do abuso e rede de proteção foram alguns dos temas abordados no forte relato que foi publicado no último dia 30.
Anna Luiza Calixto
“Eu queria muito que este vídeo fosse tão desnecessário que ele nunca tivesse que ser feito. Mas não é que ele é necessário, ele é urgente.” – aponta, em frente à câmera, Júlia Tolezano, jovem, youtuber e jornalista, ao dar o pontapé inicial na discussão dentro do seu Canal do YouTube sobre as proporções urgentes da violência sexual no Brasil como fruto de um histórico vasto de exploração e abuso desde os nossos tempos de colônia – majoritariamente, contra meninas e mulheres.
Com um olhar bastante amplo e pautado na sua vivência com profissionais da rede de proteção manauara (AM), JoutJout sai da discussão comum – o que é, como tratar a vítima – para um espectro muito mais delicado do enfrentamento à violência sexual infantil: o quanto ela é sintomática; a necessidade de credibilizar o discurso infantil e conduzir de forma emergencial a educação sexual para as Escolas como importante ferramenta de prevenção; as estatísticas evasivas sobre o quadro; a recorrência desta violação no âmbito intrafamiliar; o déficit de trabalhos de desconstrução e readequação social – para muito além da pena – com os autores da violência; a relação de provedor que muitos dos agressores tem com o lar da vítima; a culpabilidade da criança e do adolescente sobre a situação de abuso; a quantidade estimada (absurda) de casos não denunciados que se perpetuam por anos… Mesmo com a complexidade da pauta, a youtuber consegue tornar o debate fluido e causar inquietações não necessárias mas, como ela pontua, urgentes.
Além de pontuar as relações intrafamiliares de omissão e culpa sobre as situações de violência, JoutJout apresenta o caráter sintomático da vivência da violência por uma criança, principalmente a sexual. Por mais que a vítima tenha sido cruelmente ameaçada e não vá se abrir sobre o assunto, sempre há sinais. “Apesar daquela criança não correr, não gritar e não explicitar que aquilo está acontecendo, ela sempre mostra uns sinais e a gente tem que ser esperto pra pegar. Porque a criança muda o comportamento: se ela é muito animada, às vezes ela fica mais quietinha; ou ela era quietinha e de repente ficou muito agitada. Ou táhipersexualizada; ou tá suja; tá com uma coceira na xereca que você não consegue entender o porquê; hematomas no corpo que você não sabe de onde vieram; tá falando coisas e você não sabe onde ela aprendeu aquelas palavras; ou tá desenhando uns troços muito esquisitos e você não sabe onde ela aprendeu aquilo e até mesmo ursinho de pelúcia pra criança explicar o que o titio faz. Precisamos perceber e estar atentos aos sinais, porque o Governo não tá atento; o cidadão de bem também não tá atento; a família muitas vezes não tá atenta… Alguém vai ter que ficar atento. Eu topo ficar atenta, você topa ficar atento?” – alerta a youtuber.
Ressaltando o que muito vem sendo discutindo pela grande mídia, canais de comunicação e população, a youtuber aponta a emergência de levar educação sexual preventiva e esclarecedora para meninos e meninas brasileiros. A educação que parte desde os lares até as salas de aula, passando por mudanças vocabulares – abolir expressões como Prendam suas cabritas porque o meu bode tá solto em um mundo que permite que bodes e cabritas coabitem em paz – até expandir o conceito nas salas de aula, compreendendo que, nas atuais circunstâncias, já não basta o cabeça, ombro, joelho e pé, mas uma intervenção preventiva à violência (o que em nada se relaciona com ensinar crianças “a serem homossexuais” ou a praticar sexo), expondo que há limites em seus corpos, que devem ser tratados com respeito; que criança não namora nem de brincadeira e que, principalmente, não se deve sentir culpa ou medo no momento de denunciar e de dizer não. JoutJout salienta que há dois núcleos de convivência principais na vida de uma criança: casa e escola. Se a violência acontece dentro da sua casa, faz-se necessário enfatizar a importância da escola no olhar atento contra qualquer tipo de violação de direitos.
Observa-se também que, lamentavelmente, nem crianças e adolescentes estão imunes a serem culpados pela violência que sofreram, sob um pretexto de provocação e consentimento absolutamente incoerentes. JoutJout traz o relato de uma médica especializada em violência sexual contra crianças e adolescentes, cuja paciente mais jovem a ser atendido tinha quatro meses de idade. Cabe, portanto, o questionamento: que tipo de desculpa será possível utilizar neste caso? Era a roupa que esta criança estava usando ou ela provocou, pediu por aquilo? Este discurso de ódio é inaceitável e incabível quanto a vítimas que qualquer faixa etária. A mesma médica relata que muitos dos casos de abuso sexual durante a adolescência não são registrados como estupro de vulnerável, mas como gravidez precoce, o que dificulta a dimensão real da violência.
Após fortalecer a discussão sobre a recuperação da vítima e a desconstrução do agressor, a youtuber amplia o debate sobre a rede de proteção. Por mais que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição Brasileira tragam conceitos como a prioridade absoluta e a proteção integral, a prática é muito mais dolorosa e difícil. Por isto, temos uma rede bastante adoecida e desgastada por um trabalho diário e constante de lidar com a violência de forma defensiva e preventiva, bem como reverter a erotização precoce de muitas crianças cujas sexualidades foram violadas – e, sim, todos os seres humanos tem sexualidade desde o nascimento e é um processo natural, diferente da sexualização.
Por fim (ou melhor, para começar) fale a respeito. Leve o debate e sensibilize todos ao seu redor. Em especial, fale e acredite, escute as crianças. Denuncie. Quanto antes começa a nossa luta, antes acaba o abuso; antes pomos um fim à violência.