Como educar crianças feministas
A brisa de esperança assinada por ChimamandaNgoziAdiche em meio à barbárie machista diária.
Anna Luiza Calixto
Pensei milhares de vezes em como trazer para cá a pauta do estuprador que atuava como médico e, além de violentar sexualmente pacientes, também consumia virtualmente imagens e vídeos de estupros contra crianças e adolescentes. Nada me parecia suficiente ou minimamente proporcional à justiça que as vítimas devem ter acesso. Pensei na mulher que só soube que foi estuprada quando a polícia a procurou e mostrou uma das cenas. Ela chegou a pensar que fosse um golpe. Imaginei como deve ter sido (e estar sendo) doloroso se reconhecer em uma cena de estupro filmada, como em um pesadelo em que você se vê em terceira pessoa. Peguei-me sentindo raiva por cada uma das crianças que além de serem violentadas da maneira mais perversa, cruel e desumana, tiveram cenas desta natureza comercializadas para o lucro do explorador. Lembrei ainda de quantas meninas vão ouvir esta notícia e ter reforçado em sua formação o estigma de que a sexualidade é uma ameaca violenta que precisa ser ocultada do mundo inteiro. Aí tornei a pensar em quantas vezes eu vim até aqui de maneira redundante para repetir extenuantemente que ESTUPRO NÃO É ENTRETENIMENTO. Não deve existir esta expressão que temos ouvido o dia inteiro nos noticiários, “pornografia infantil”, porque a premissa da pornografia (teoricamente) é servir de entretenimento sexual para uma pessoa adulta. Não podemos aceitar que cenas de estupro de vulnerável possam ser concebidas como entretenimento. O nome que se deve dar a este crime é o de comercialização de conteúdo de violência sexual contra crianças e adolescentes. Ponto.
É cansativo defender o óbvio mas o meu cansaço não pode sequer ser comparado ao que cada uma das vítimas está sofrendo. Como se não bastasse tanta violência ainda ter que ouvir o estuprador, Andrés Eduardo Oñate Carrillo, dizer que não sabe que impulso o levou a armazenar estas imagens e admitir que esperava o momento mais oportuno para esfregar o pênis nas pacientes… É tão absurdo que realmente chega a ser inacreditável. Eu também pensaria ter sido um golpe, um trote de alguém se passando por um policial. Tudo, menos acreditar que fui estuprada durante um procedimento já invasivo por um profissional que deveria prezar pela ética e pelos cuidados necessários para assegurar meu direito à saúde plena. Covardia sem precedentes.
Foi pensando em tudo isto e decidindo se eu iria sujar esta rede social com a imagem deste estuprador nojento que fui interrompida pela minha mãe, que encontrou aqui em casa um livro que li há alguns anos, da escritora feminista nigeriana Chimamanda Ngozi Adiche, cujo título revela seu propósito, “Para educar crianças feministas”, narrativa fluída no formato de uma carta enviada pela autora para uma amiga que acaba de se tornar mãe de uma menina.
Quando peguei o exemplar em mãos recebi uma lufada de esperança. Lembro da menina de dezessete anos que eu era encontrando com esta mulher tão forte e sábia nas páginas do livro e de me reconhecer em tantos traços de silenciamento machista que atravessei desde a infância, com muitas atenuantes pelo fato de eu ser uma mulher branca. Mas reencontrar as palavras assertivas mas marcadas por didática e afeto da Chimamanda me encheu de alívio pela lembrança de que não estamos sozinhas.
Cada uma das vítimas certamente teve sua vida precedida por um sem-número de mulheres de luta que, se ao menos pudessem, teriam tentado impedir esta brutalidade sem tamanho. O fato é que não podemos impedir todos os casos de acontecerem, mas podemos plantar esta semente de luta em cada mulher e menina, educando e construindo mentalidades feministas.
Por isto quero que esta breve reflexão seja um sopro de serenidade em meio à urgência do caos que atravessamos. Que cada uma de vocês entenda, infelizmente através desta barbárie, que a violência nunca foi sobre o comportamento ou a postura da vítima. Temos aqui dois exemplos indiscutíveis, mulheres desacordadas e crianças. Não havia possibilidade de defesa e, mesmo se houvesse, a covardia não seria menor.
Em nome de cada uma das meninas e mulheres vitimadas, encerro o texto com as palavras de Chimamanda.
“(…) Com Chizalum, não finja que o sexo é uma mera ação reprodutiva controlada. Ou uma ação “apenas no casamento”, pois é mentira. (Você e Chudi faziam sexo muito antes do casamento, e provavelmente ela vai perceber isso quando tiver uns doze anos). Diga-lhe que o sexo pode ser uma coisa linda e que, além das evidentes consequências físicas (por ser mulher!), também pode ter consequências emocionais. Diga-lhe que o corpo dela pertence a ela e somente a ela, e que nunca deve sentir a necessidade de dizer “sim” a algo que não quer ou a algo que se sente pressionada a fazer. Ensine-lhe que dizer “não” quando sentir que é o certo é motivo de orgulho.” (p. 65)
Precisamos aprender a nos orgulharmos de cada “não” que dizemos em alto e bom som, tolindo condutas abusivas ou comportamentos ameaçadores contra nós. E não sentirmos vergonha ou culpa quando dizer “não” ainda for uma dificuldade. Só nos livrando do peso destas correntes históricas é que poderemos, enfim, educar meninos e meninas feministas.