Bem me quer, mal me quer?

O uso que abusadores fazem de “brincadeiras” e “carinhos” para cometer violência sexual contra crianças.

Anna Luiza Calixto

“Senta no colo do titio, filha!” “Para de ser malcriada, dá um beijo no seu avô!” “Não é pra me dar trabalho, o que seu padrasto mandar você obedece.” – através destes e tantos outros comandos, orientamos crianças a obedecer cegamente aos adultos, o que representa um verdadeiro desserviço à infância e um crime contra sua dignidade sexual.
Sim, isso mesmo. Doutrinar crianças não é educação. Seres humanos em processo de desenvolvimento peculiar não devem ser “domesticados”, mas protegidos. Devido a essa pretensa intenção de fazer com que crianças sejam dóceis e servis, as férias em família e festas de fim de ano tornam-se perigos em potencial para meninos e meninas que não esperam ser alvo de qualquer ameaça no ambiente em que deveriam viver infâncias plenas, livres de violências.
Aqui devemos considerar os dados de 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cujo anuário daquela data trouxe a seção “Violência sexual infantil, os dados estão aqui para quem quiser ver.” O título nos diz muito porque não há um tema do qual as pessoas desviem mais do que do abuso sexual contra crianças e adolescente. “Vamos mudar de assunto?” – a resposta é não. Não podemos fechar os olhos para a calamidade da infância brasileira simplesmente porque o tema é desagradável e nos desaponta.
Justamente essa pesquisa revela que71,5% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são praticados pelas mãos de conhecidos da vítima e 72,2% dos estupros contra essa população etária acontecem dentro de casa. O abuso sexual tem se revelado intrafamiliar, discreto e invisibilizado.
Recentemente a apresentadora Xuxa Meneghel deu uma entrevista a um podcast e relatou sua angústia quando percebe que o modus operandi dos abusadores é, muitas vezes, baseado em brincadeiras. Ela menciona a brincadeira de “vampiro” em que o agressor coloca a boca no pescoço da criança ou o pique-esconde em que ele toca o corpo da criança, assim como na brincadeira de médico em que o abusador analisa o corpo da “paciente”.
Mesmo que eu discorde da entrevistada em alguns dos seus posicionamentos e de pontos sensíveis da sua trajetória artística, eu preciso endossar sua fala por outro viés: a educação autoprotetiva para crianças e adolescentes não pode ser conduzida pelo caminho do medo. Afirmar que o agressor vai ser sempre um sujeito assustador e carrancudo é um desserviço à infância, uma vez que a realidade é que ele pode ser uma pessoa familiar, sorridente e aparentemente amiga, que oferece doces e brinquedos, dispondo do seu tempo precioso de adulto para brincar com a criança durante horas.
Esse texto não tem como objetivo prejudicar sua estrutura familiar, mas abrir seus olhos. O monstro não se esconde embaixo da cama, muitas vezes ele dorme no quarto ao lado e toma café da manhã conosco. Eu sei que pode ser que não. Mas pode ser que sim. Cabe a nós a cautela amorosa com nossas crianças, batendo à sua porta com a prevenção antes que outro adulto faça isso com o abuso.