A procissão das almas
Em Atibaia, possivelmente, ela nunca tenha ocorrido, visto que, na Sexta-Feira da Paixão, acontecia aqui a Procissão do Enterro, ou procissão do Senhor Morto, que integrava a cerimônia da Semana Santa, uma manifestação igualmente impactante, mas menos lúgubre que a procissão das almas.
Márcio Zago
A relação entre os mortos e os vivos se expressa de várias formas em diferentes culturas. A procissão das almas é, notadamente, a mais sinistra expressão de religiosidade brasileira. Uma busca superficial no Google revela sua origem, lendas e as superstições que obviamente surgiram em torno de uma cerimônia tão original… e assustadora.
Em Atibaia, possivelmente, ela nunca tenha ocorrido, visto que, na Sexta-Feira da Paixão, acontecia aqui a Procissão do Enterro, ou procissão do Senhor Morto, que integrava a cerimônia da Semana Santa, uma manifestação igualmente impactante, mas menos lúgubre que a procissão das almas.
No O Atibaiense de 1928, o jornal trazia uma crônica muito bem escrita sobre uma procissão das almas que ocorria em Pirapora do Bom Jesus, cidade cortada pelo Rio Tietê. O texto, assinado pelo professor Rufino da Rocha Ferraz, descrevia sua experiência vivida na infância, quando estudante no Santuário do Senhor Bom Jesus, um tradicional espaço religioso fundado no século XIX. O texto (com quase cem anos) de nome “Recordando”, começava assim: “Rara, raríssima é a pessoa que ainda não ouviu dizer da lúgubre procissão das almas.
Desde criança ouvimos referências terrificantes a respeito dela. Uns dizem que são as próprias almas que vêm do outro mundo em desfilada solene e grave. Aparece o cortejo em determinado dia da semana, entre tantas e tantas horas da noite. Aparece, surge de repente como uma visão espectral iluminada de clarões sinistros, no meio de jeremiada monotonia, pesada, soturna… O estranho cortejo arrepia os cabelos às pessoas timoratas.
Põe-nas estarrecidas quando começa a deslizar pelas estradas e pelos campos ou quando estaca ao pé de uma ou outra capelinha perdida no mato…”Esta procissão acontecia à noite, onde, empunhando tochas e matracas, os devotos desfilavam pelas estradas e ruas até atingir os cemitérios, ponto alto da cerimônia. Os cânticos de lamentos e lamúrias completavam a sinistra cena, que vez ou outra parava em determinadas capelinhas de beira de estrada (Capelinhas na beira da estrada eram comuns na época).
Na crônica do professor Rufino, as mulheres trajavam opa branca, fato que deixava ainda mais macabra a cerimônia. Diz a lenda que esta procissão era realizada originalmente pelas próprias almas penadas, composta de espíritos atormentados e desencarnados. Durante seu trajeto, que podia ser ouvido pelas ruas da cidade, os vivos não podiam jamais olhar o desfile das almas em hipótese alguma.
Caso alguém espiasse pela janela para ver o que estava acontecendo, receberia de uma das almas uma vela que ficaria acesa por muitos dias, até virar um osso humano, e o vivente curioso estaria atormentado pelas visões da procissão até sua morte. Para as crianças, imagina-se, era assustador.
Nesta crônica, o autor revelava as artimanhas que os internos realizavam para assistir à cerimônia das janelas de uma torre do Santuário. Janelas que davam de frente ao cemitério. O texto, carregado de lembranças sensoriais do autor, terminava assim: “A procissão das almas é uma realidade tangível. Em Pirapora, ao que parece, não dizem procissão das almas. No entanto, ajusta-se este nome como uma luva ao gesto enternecedor do povo em prol dos que já se foram… E, de todo conjunto de circunstâncias que revestiam o fato, uma me gravou funda na memória: a do imenso soluço do Tietê esgueirando-se entre rochedos, brusco, bravio, que acompanhava, parece, o soluço imenso do povo da vila lendária…”.
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.