As batalhas no carnaval de 1914
Márcio Zago
Em 1914 tem inicio na Europa a Primeira Guerra Mundial, também conhecida como Grande Guerra, um dos conflitos mais mortais da história da humanidade. Foram mais de setenta milhões de militares envolvidos, sendo sessenta milhões só de europeus. Mais de nove milhões de combatentes foram mortos em razão dos avanços tecnológicos que favoreceram a enorme letalidade das armas.
A crise humanitária e econômica gerada pela guerra causou reflexos no carnaval daquele ano e dos anos seguintes. Em Atibaia um artigo publicado no jornal “O Atibaiense” informava: “Aí vem o carnaval, o celebre e tão falado carnaval, alegre e estabanado como sempre. Infelizmente este ano o Momo não pode ser festejado comonos deleitosos tempos de outrora devido à feia crise formadas por conjunturas perigosas e que nos ameaça com suas carantonhas; é esta a ideia que fazemos do carnaval deste ano”.
Outro cronista do mesmo jornal, a despeito da total ausência de carnaval na cidade, escreveu sobre outra batalha bem mais aceitável: “Fevereiro! Eis que surge o Carnaval, o tradicional e delirante Carnaval. Momo e Pierrô em conferência amistosa zombam gostosamente da terrível crise que nos ameaça e nos atormenta… enquanto pelas ruas cheias de vida e de flores, atapetadas de serpentinas e confetes, passam grupos elegantes, soldados da terrível batalha… de perfume”. E ocronista continua: (…) Lá vem um grupo de graciosas senhoritas, alegres e prazenteiras; daqui segue um grupo de rapazes. Eis que chega o momento da batalha, onde as bisnagas espargem continuamente delicados perfumes… Enquanto são trocados olhares significativos e cheios de voluptuosidade.
No colo nu e macio, o éter perfumado produz leves tremores, pela excentricidade de sua gélida e característica propriedade. Ouvem se queixas, risos, mas… Tudo mui baixinho como o pipilar das pombas, enquanto as bisnagas funcionam ea luta continua (…)”.Naquele momento de crise mundial a dura realidade apontava para a impossibilidade de ocorrer estas duas batalhas ao mesmo tempo: uma verdadeiramente real e desumana, e a outra imaginária, fantasiosa e platônica. Com a crise o carnaval em Atibaia passou desapercebido.
A ponto de outro cronista, que assinava com o pseudônimo de Pierrô, sugerir a troca da brincadeira carnavalesca por outra celebração: um banquete: “Sim, banquete, pois com razão derivam a palavra CARO e VALE que quer dizer ADEUS CARNE.É por isso que no carnaval todos comem muita carne para se indenizarem da abstinência imposta durante a quaresma”. E assim, naquele triste carnaval de 1914 não houve festa, nem banquete. Sem a folia e a alegria característica da data todos se recolheram ao silêncio da oração.
Os pedidos pela paz e pela alegria também não surtiram efeito. A guerra estava apenas começando e mais tarde, no rastro de mortes e destruição, ainda viria a Gripe Espanhola, a pandemia que ceifou cinquenta milhões de pessoas no mundo todo, muitos atibaianos. A despeito de todas as tentativas de superar a dore normalizar a existência em meio ao caos, a alegria do carnaval só voltou em 1919, principalmente no Rio de Janeiro, quando finalmente tudo aquilo que foi ruim virou confete e serpentina.
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.