Manifesto do Coletivo Literário Kalúnia
Por Coletivo Literário Kalúnia
“Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística, qual seja o autor.” Subvertendo nossos hábitos de autores, começamos este manifesto com palavras que não saíram de nós, mas da septuanária Declaração Universal dos Direitos Humanos. A literatura é um direito. É uma versão construída das realidades de uma época. É livre interpretação das irrealidades atemporais. É uma advertência dos povos originários para nós e um encômio que enviamos para as futuras gerações. A palavra é resgate à história, transmove e sensibiliza. A língua portuguesa –última flor do Lácio, inculta e bela (emprestando as palavras de Bilac) – é peça poderosa do olhar latino para um mundo que nos vê terceiros. A literatura é arte e, hoje mais do que nunca, resistência. É parte de nós e nós parte dela.
Literatura é libertação. Transpõe demarcações e emancipa silenciados. Representa povos, etnias, crenças, sexualidades, a infância e a velhice, a virtude e o pecado, nós e os outros. A literatura é patrimônio, monumento construído por todos nós e ameaçado por todos eles. A literatura conta a história sob a perspectiva de seus operários – nós, os escritores que, neste encontro, vemos alento e esperança na opulência que dividimos: a palavra. Quando me orlo de vocês, societários do escrever, cerco-me também do que colocam no papel e leem – e sempre que o fazem em voz alta, é empiricamente um gesto político.
Numa definição não mais que léxica, calúnia é inverdade desonrosa sobre coisa ou pessoa. Há, bem como, o elóquio de que uma calúnia é uma mentira, uma lorota, uma invenção. E o que somos, benquistos caluniadores, senão inventores de verdades que sobrepõem-se aos axiomas que não se sabe quem primeiro escreveu? Conceição Evaristo apelida suas palavras de escrivivências. E se nossas vivências, quando escritas, são invenções, ousamos aqui considera-las calúnias. E se o que escrevemos são calúnias, caluniadores somos nós!
Do cordel à epopeia, temos fé no ‘criar’. Quem nos dera tanta murmuração, declamação, palavras no papel e nas bocas fossem cabais para que a literatura – que é conhecimento e ao passo que nos tem em si, pertence ao povo – movesse as estruturas de poder. Numa ode à liberdade, quem nos dera todo este absurdo fosse tão somente uma calúnia, com K e tudo. Que fosse um delírio acordar em um Brasil (este, lamentavelmente, grafado com Z) em que apenas 17,7% das cidades têm ao menos uma livraria; em que 44% dos nossos conterrâneos não praticam a leitura e, os que a praticam, tendem a não ler mais do que dois exemplares no período de um ano. O Brasil cuja presidência, há poucos meses, veta concursos de literatura promovidos pelo poder público federal, sob o subterfúgio do aumento da despesa pública sem que haja, como justificativa, retorno hábil. Há calúnia maior do que esta?
O retorno está em cada criança que lê suas primeiras palavras, unindo sílaba por sílaba. No jovem da periferia aprovado na universidade. Na mulher que volta às salas de aula depois de anos sufragada em múltiplas jornadas de trabalho. O retorno somos nós, escritoras e escritores que, em meio ao horror, semeiam a arte compartilhada e viva, como equipamento indispensável de emancipação do nosso território, da produção local, de nós mesmos e daquilo em que acreditamos. A literatura é a resposta.
Em tempos que fluem em telas e por algoritmos, o culto à interpretação e à troca de saberes, olhares e experiências é o que nos ampara da efemeridade indeterminada do digital, também imprescindível para a democratização do discurso literário, da escrita como prática popular de avanço social. A literatura não é um veredito, um pétreo juízo de valores. É um rio em que, heraclitamente, não se banha duas vezes, pois a sua própria água quer correr para conhecer novos caminhos. A literatura é o caminho, é o movimento. E o retorno deste fluxo cultural é permanente, etéreo.
A literatura, no entanto, não pode ser mercadológica; de urgência; de best sellers pensados para a rápida passagem de olhos, sem aprofundamento. A lógica de negação aos clássicos literários também renega a nossa história, brilhantemente narrada por eles. O tecer literário e sua discussão social não podem ser preconceituosos, exclusivos e intelectualmente elitistas: sempre haverá quem lê Paulo Freire, bem como aquele que lê Paulo Leminski e o outro que irá preferir Paulo Coelho. A literatura é democrática. A literatura é um direito político, vem do fazer público e também vem do que é clássico, dos que nos antecederam. A literatura é nossa e nós somos a literatura.
“Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”, escreveu Chico Buarque. “Que tempos são estes – indaga Brecht –, em que precisamos defender o óbvio?” e lhe responde categoricamente Belchior: “Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto.” – e, no nosso caso, escrevemos e escreveremos enquanto houver tinta na caneta e tanto para se dizer.
A literatura, por fim, é a cura. É a resposta, em qualquer vernáculo, para o ódio e sua arbitrariedade perversa. A literatura e suas calúnias são o motivo para o nosso encontro. “Versos, não. Poesia, não. Um modo diferente de contar velhas estórias.”, Cora Coralina.
Juliana, Maria Emília, Marly, Gilberto, Iete, Rita, Cátia, Maria, Georges, Kelly.
Cecília Meireles, Millôr Fernandes, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Zélia Gattai, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, Ariano Suassuna, Anis Mansour e Cora Coralina.
Sejamos todas e todos muito bem vindos ao Kalúnia, coletivo em que a literatura não apenas é construída, mas nos constrói. E não nasce pelo sucesso, ou o que é assim definido. Nasce pela prazerosa prática de conhecer a palavra como manifesto vivo. Há quem diga que a letra no papel é morta, mas tendemos a acreditar que é no papel que ela se torna mais viva. Que saibamos olhar para o talento do outro com admiração e apreço, sob a ótica do acolhimento e não da competição ou da meritocracia – esta sim, uma calúnia e tanto. Que sejamos capazes de aplaudir e reconhecer, ao passo que sejamos abertos a expor, ouvir e mudar. A arte não é inexorável e nem podemos ser, enquanto artistas. Nossa ode à liberdade de criação e expressão escreve um ponto final neste manifesto, também coletivo, através de uma frase cujo autor ou autora (que ironia!) não se conhece: “Eu sou livre. Tu és livre. Viva a livraria!”