UM PAR DE SAPATOS PRETOS
Aconteceu em 1964. Eu tinha começado a trabalharem São Paulo, onde passei a morar depois que me mudei de Atibaia Meu trabalho erano CityBank, na esquina da Avenida Ipiranga com a Avenida São João. Depois que deixava aquele trabalho tão cansativo, em vez de ir logo para casa, como eu ainda não estudava, eu costumavapassear ali pelo centro da cidade. Ficava olhando as vitrinas das lojas da Rua Direita, rua são Bento, Praça do Patriarca.
Foi na vitrina da Calçados Eduardo, na Rua São Bento, que vi ummaravilhoso par de sapatos pretos. Mas custava tão caro! Quarenta cruzeiros. Naquela época a moeda era o cruziro. Apesar do preço alto,decidicomprá-lo, mas tinha que esperar mais ou menos uns vinte dias quando recebesse meu salário.
O tempo passou rápido e, nodia 10 de junho, após sair do trabalho, fui eu todo contente correndo comprar os sapatos. Depois, me dirigi àpraça do Patriarca para tomar o ônibus que me levou ao Bairro de Santa Cecília, onde eu então morava.
Depois de descer no ponto do ônibus,foi indescritível a tristeza que senti naquele momento, ao constatar que um dospés daquele par de sapatos havia caído. Só tinha um pé dentro da sacola. Fiquei pensando então onde teria caído. Muito provavelmente no ônibus, pois deixei a sacola num banco vazio, ao lado de onde estivera sentado, e um dos pés deve ter caído, e eu não percebi. Mas então pensei: podia ser que o outro pé tivesse ficado na loja. Podia ter sido um descuido do vendedor que teria colocado só um pé na sacola. Fui lá correndo e perguntei para o vendedor que tinha me atendido. O vendedor, um rapaz moreno, bem magro de bigode, me falou que tinha certeza queme entregara os dois pés de sapatos.
Decidi então procurar o ônibus que eu havia tomado uma hora antes para ver se o pé de sapato não tinha ficado no ônibus. Mas ninguémsabia do meu pé de sapato. Nem o motorista nem o cobrador.
O motorista me falou:
–– A gente não viu, não, moço. O que não quer dizer que você não tenha deixado o sapato no ônibus Pode ser que ele tenha caído embaixode um banco e a gente não o tenha visto. Nesse caso, quem pode ter achado o pé desse sapato é o pessoal que faz a faxina no ônibus.
Perguntei então:
–– E como que eu faço para saber se o sapato ficou noônibus?
––Você terá de ir até a garage.
––E lá nãotem telefone para eu perguntar se não encontraram meu sapato?–– perguntei.
–– Até tem, só que eles nãoatendem o usuário para esse tipo de coisa. Você nãoquer o endereço para dar uma chegadinha na garage?
–– Me passe, disse eu,apesar de não pretender ir até a garage.
Anotei o endereço.
Agradeci ao gentil motorista, mas achei que não compensava ir até a garage. Muito provavelmente meu péde sapato não estava lá.
Fui embora para casa muito chateado. Meu pé de sapato preto já era. Ou melhor, meu par de sapatos preto já era. Na verdade, não perdiapenasum pé, perdi o par.
À noite daquele dia quando me encontrei com Marília, minha namorada,contei a ela o que havia acontecidocom meu pé de sapato, e ela me falou:
––Quer uma sugestão, Luiz?
–– Fala, Marília.
––Vá até a garagem. De repente o seu pé de sapato pode estar lá.
Eu lhe falei:
–– Mas é tão longe, Marilia.
Eu nãoestava mesmo afim de ir até o Jaguaré procurar o sapato na garage do ônibus.
Chegou o final de semana e fui para Atibaia, como fazia sempre nos sábados. Contei para papai o que acontecera com meu pé de sapato e ele me deu o mesmo conselho que Marilia me dera. Ir procurar o sapato na garage do ônibus.
Aí então eu pensei. Quem sabe a Marília e papai tenham razão. E se o sapato estiver mesmo na garage do ônibus como achavam eles?
Mudei de ideia. Decidi ir até o Jaguaréem busca daquele bendito pé de sapato.Na segunda-feira, depois que saí do banco, criei coragem e procurei me informar como fazia para ir naquela rua do Jaguaré onde se localizava a garage do ônibus.
Em seguida, peguei um ônibus na avenida Angélíca para o Largo de Pmheiros. E no Largo de Pinheiros peguei o ônibus para Jaguaré. Ainda bem que ele passava na rua, onde se localizava a garage. Desci do ônibus e para láme dirigi.
Era umbarracão bem grande. Logo depois de entrar, um senhor me perguntou:
–– Posso ajudar?
Falei então a ele o que fora buscar lá.
Ele foi dar uma olhada no fundo da garagem e depois voltou dizendo que o sapato não estava láentre os objetos perdidos.
Voltei para casa muito aborrecido. Três horas perdidas e nada do meusapato.
Os dias foram passando Já estava quase chegando o final do mês e vi que o meu dinheiro não ia dar para comprar outro par de sapatos, apesar de eu ter procurado economizar.
Um belo dia,depois que saí do Banco, após o trabalho, entrei numa lanchonete para tomar um cafezinho. Observei que um rapaz morenode seus vinte e poucos anos não parava de olhar para mim. Moreno, cabelos bempretos, bem alto, de bigode.
Enquanto eu tomavameu cafezinho, ele veio se aproximando de mim. Chegou bem perto e perguntou:
–– Posso falar com você?
Diante de minha resposta afirmativa, voltou a falar:
–– Que bom que te encontrei. Você não se lembra de mim?
––Eudisse que não.
Ele falou então que era vendedor na loja de sapatos Eduardo. E que tinha me atendido um dia em que eu fora comprar um par de sapatoslá.
Enquanto ele falava, eu já fiquei pensando: será que ele achou o meu sapato?
Não deu outra.
Ele falou que eu tinha ido procurar o sapato perdido lá e lhe perguntado seum pé daquele par de sapatos não tinha ficado na loja. Realmente não tinha, disse ele. Depois ele falou que depois que eu saíum senhor foi lá na loja com o sapato na mão me perguntando se o sapato não fora comprado lá. Era o seu sapato, disse então o rapaz. Aquele senhor o havia encontrado na rua, Como no sapato tinha uma etiqueta da Calçados Eduardo, ele desconfiou que o sapato tinha sido comprado lá na loja. Então achando que o comprador fosse procura-lo lá, ele foi lá entregar o sapato. Como não tinha seu telefone, não pude lhe telefonar para te avisarque o seu sapato estava no loja . Então o sapato ficou lá uns vinte dias. Durante esse tempo eu acabei sendo demitido das Lojas Eduardo e agora trabalho aqui nesta lanchonete.
Quando o rapaz terminou o seu relato, senti muita alegria. Tive inclusivevontade de abraçar o moço. Quando terminei de tomar meu cafezinho,ele me convidou então a ir buscar o pé de sapato lá na loja.Depois que ele me entregou o pacote muito bem embrulhado com o sapato, eu tirei da carteira uma nota de dez cruzeiros e lhe dei de gorjeta. Agradeci–lhe efusivamentee nos despedimos.
Quando chegueiem casa, liguei para Marília. Para convidar a ir ao cinema comigo naquela noite. Não lhe falei que tinha recuperado o sapato. Quis lhe fazer uma surpresa.
Ao me encontrar com ela naquela noite, mostrei-lhemeus maravilhosos sapatos e ela também os achou muito bonitos. Eu sabia que ela também ia gostar porque tem muito bom gosto.