HISTÓRIAS DE ATIBAIA – As desavenças entre turistas e moradores de Atibaia na década de 1940
O jornal O Atibaiense registrou, em diversas ocasiões na década de 1940, reclamações contra determinadas posturas dos visitantes mais ousados.
Márcio Zago
Há oitenta anos, as desavenças entre turistas e moradores de Atibaia tinham outros contornos. Nem todos os cerca de 20 mil habitantes recebiam com naturalidade dos estranhos que circulavam pela cidade.
O jornal O Atibaiense registrou, em diversas ocasiões, reclamações contra determinadas posturas dos visitantes mais ousados. O traje de banho e a maneira como homens e mulheres desfilavam pelas ruas chegaram a incomodar profundamente a rígida moral da época, rendendo longos artigos. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando o açúcar foi racionado, os turistas também foram alvo de severas críticas pelo consumo excessivo do produto e, sobretudo, pelo transporte clandestino de grandes quantidades para fora da cidade.
Mas foi um artigo em especial, de tom mais contundente e indignado, que chamou minha atenção. Nele, o autor denunciava a arrogância com que certos turistas tratavam os moradores mais humildes: “Um turista é um homem que passeia. Ou mulher. O fato de alguém vir passar o ‘week-end’ numa cidade como Atibaia ou um mês em Paris, Londres, Xiririca, em nada poderá afetar a personalidade do indivíduo. Até agora, nenhuma novidade. Mas essa palavra ‘turismo’ ou ‘turista’ exerce um curioso efeito sobre os indigentes mentais, sobre as cabotinices ambulantes, sobre todas essas figuras de homens e mulheres, compostas de uma estranha mistura onde entra a coca-cola, um romance de Suzana Flag (pseudônimo de Nelson Rodrigues), certos arrevesamentos americanos, uma pitada de ilusória suficiência metropolitana, completados por toneladas de vazio. Toneladas que nada pesam e não ocupam lugar. Existem apenas”.
A introdução — elegante e ferina — preparava o terreno para o episódio relatado a seguir: “No domingo passado, um casal de noivos saía do cartório civil em direção à igreja. Camponeses modestos, gente do sítio, ‘caipiras’, como pejorativamente e injustamente são chamados. À frente, o noivo com seu terno apertado; ao lado, a noiva de vestido branco com cauda. Atrás, os parentes e amigos (…). Até aí, nada demais. Porém, eis que surge meia dúzia de rapazes e moças, com os indefectíveis blusões e ‘Jeans Sablon’, as infalíveis calças compridas, todos munidos dessas muito práticas e pouco eficientes máquinas fotográficas tipo caixão. Pobre Major Juvenal Alvim, que tanto ajudou e foi tão querido pelos ‘caipiras’, do alto de seu pedestal teve de assistir calado a uma exibição degradante. As mocinhas e mocinhos davam gritos, gargalhadas, comentários em altas vozes. Depois, para completar, postaram-se diante dos noivos, coitados, que nem sabiam como proceder, sorrindo tímidos e envergonhados, enquanto disparavam suas kodaks em poses forçadas de Jean Manzon… Esses infelizes turistas estarão hoje a comentar suas ‘extraordinárias aventuras’ em Atibaia”.
Esse pequeno texto é revelador de posturas que, ainda hoje — felizmente em menor escala —, persistem aqui e ali. Ele desnuda a visão equivocada de superioridade que alguns visitantes carregam pelo simples fato de virem da metrópole, ao mesmo tempo em que reduzem o morador simples ao estigma de “caipira”. Que, aliás, deveria nos honrar. O artigo poderia render longos debates, mas o próprio autor encerra a questão com a sutileza e a contundência de sua prosa: “Posso vê-los neste momento nas praias de Santos, estâncias balneárias, cidades de veraneio; homens e mulheres, blusas de cores berrantes, sapatos de sola grossa, óculos escuros, máquinas fotográficas a tiracolo e, nos olhos, um brilho bovino inexcedível de mediocridade satisfeita”. A propósito, o texto em questão é de 1946 e de autoria do saudoso amigo André Carneiro.
* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”. Criador e curador da Semana André Carneiro.



