Uma infância sufocada não tem espaço para crescer
O mito de Procusto em uma reflexão sobre a forma como o adultocentrismo asfixia as peculiaridades da infância.

Anna Luiza Calixto
Na mitologia grega, Procusto era um criminoso conhecido por sua macabra cama de ferro. Todos os viajantes que passavam por sua hospedaria eram forçados a deitar-se nela. Se o corpo fosse maior do que a cama, ele amputava o excesso. Se fosse menor, esticava o hóspede até o tamanho desejado. Ninguém saía ileso.
Esse mito sobreviveu aos séculos porque revela mais do que crueldade: é uma metáfora sobre a violência de impor um padrão único, indiferente às diferenças humanas. A “cama de Procusto” tornou-se expressão corrente para toda forma de enquadramento forçado — quando se exige que pessoas se moldem a regras rígidas, mesmo que isso cause dor.
Hoje, séculos depois, podemos enxergar como esse mito ecoa em práticas contemporâneas. A dra. Catarina Decome Poker, psicóloga escolar, em sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo, reconhece como uma das áreas em que a cama de Procusto ainda oprime, a forma como os adultos tratam a participação das crianças em suas próprias vidas.
O adultocentrismo é a ideia de que o mundo pertence aos adultos, cabendo às crianças apenas adaptar-se às estruturas e decisões impostas. Nesse modelo, o ponto de vista adulto é considerado universal, “a medida de todas as coisas”, enquanto o olhar infantil é desqualificado como imaturo, ingênuo ou pouco relevante.
Assim como Procusto forçava os viajantes a se ajustarem à sua cama, os adultos forçam as crianças a caberem em padrões rígidos de comportamento, expectativas escolares, rotinas familiares e até sonhos de futuro que não refletem quem elas são e almejam ser. Muitas vezes, a voz da criança é silenciada — seja nas pequenas escolhas do cotidiano (o que vestir, com quem brincar, como organizar seu tempo), seja em decisões maiores que impactam diretamente sua vida (mudanças de cidade, guarda após separação, políticas públicas que definem seus direitos).
Essa imposição gera violência simbólica: não há mutilações físicas como no mito, mas há cortes invisíveis. São as asas podadas, a espontaneidade reprimida, a criatividade engessada. São as crianças esticadas para caber em agendas adultas, pressionadas a se antecipar a fases da vida que ainda não chegaram e tolidas em suas peculiaridades mais ricas.
A Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) já estabeleceu que toda criança tem direito a ser ouvida em todas as questões que lhe dizem respeito, através do princípio do interesse superior da infância. Esse conceito é revolucionário porque reconhece a criança como sujeito político, e não como objeto de tutela.
É preciso virar o mito de cabeça para baixo. Se Teseu venceu Procusto obrigando-o a deitar na própria cama, nossa tarefa contemporânea é desmontar essa cama simbólica, reconhecendo que cada criança tem medidas próprias de existir, sentir e se expressar.
Ao reconhecer a infância como protagonista, não estamos apenas protegendo direitos: estamos enriquecendo a vida coletiva com novas formas de ver e transformar o mundo.
O mito de Procusto nos lembra do perigo de transformar diferenças em problema. No caso das crianças, o adultocentrismo insiste em ajustá-las a uma cama que não lhes serve, podando ou esticando seus desejos e vozes.A saída não está em moldar crianças para caberem no mundo adulto, mas em permitir que o mundo se expanda para acolher as medidas da infância. Só assim, em vez de vítimas da cama de Procusto, elas poderão ser autoras de seus próprios caminhos e protagonistas de suas histórias.



