HISTÓRIAS DE ATIBAIA – “Rodapé Crítico e Literário”: o desenho das crianças

Já em 1945, André Carneiro chamava a atenção de pais e professores para a importância de permitir que a criança se expressasse de forma livre e espontânea.

 

 

Márcio Zago

Em abril de 1945, a coluna “Rodapé Crítico e Literário” do jornal O Atibaiense publicou um extenso artigo dedicado ao desenho infantil. Assinado por Norri ACE — pseudônimo de André Carneiro —, o texto surpreende pela atualidade de suas reflexões, mesmo passadas tantas décadas. Sob o manto do anonimato, André utilizava a coluna para manifestar suas opiniões sobre arte e cultura, revelando uma postura de vanguarda ao abordar temas como surrealismo, arte moderna, cinema e artes plásticas. Já naquele tempo, André chamava a atenção de pais e professores para a importância de permitir que a criança se expressasse de forma livre e espontânea: “A criança é um ser em formação, com reações diferentes e modos de sentir peculiares. Apesar do seu espírito imitativo, quando deixada em plena liberdade de exprimir o seu mundo, diferente do nosso, surgem obras deliciosas, de um saboroso primitivismo ingênuo. As deformações e simbolismos, nos artistas modernistas, provêm de um grande esforço de abstração, pesquisa à procura do essencial da personalidade adulta, condicionada por uma evolução envolta em convenções e preconceitos, cânones e tabus. Na criança são resultados de uma fantasia cheia de sonhos e ilusões povoadas de fantasmagorias. (…)” Naquela época, a criança ainda era vista — para a maioria das pessoas — como um adulto em miniatura, percepção que influenciava diretamente a educação artística. No próprio jornalO Atibaiense, era comum a divulgação de exposições com trabalhos dos alunos do grupo escolar, onde nos meninos valorizavam-se os desenhos bem copiados e nas meninas, os trabalhos de tricô, crochê e outras atividades voltadas às prendas domésticas. No artigo, André cita as pesquisas de Franz Cižek e Marion Richardson, pioneiros no ensino de artes para crianças com liberdade e autonomia criativa. É curioso notar que, nesse mesmo período, Viktor Lowenfeld ainda desenvolvia seus estudos sobre as etapas do desenvolvimento gráfico infantil — teoria que se tornaria referência mundial para educadores e permanece atual até hoje. Décadas depois de escrever esse artigo, ainda vivendo em Atibaia, André Carneiro conheceu o gravurista Joaquim Gimenes Salas, com quem estabeleceu uma grande amizade. Conhecido como Gimenes, ele criou, no final dos anos 1970, o Clubinho de Artes e Arteiros de Atibaia — um espaço/ateliê pioneiro no ensino de artes plásticas para crianças, fundamentado nos princípios da livre expressão e da liberdade criativa. Em 1983, após o falecimento de Gimenes, o Clubinho deu origem ao Garatuja, hoje Instituto de Arte e Cultura Garatuja, que continua ativo e fiel à mesma proposta pedagógica, mantendo vivo o legado de uma educação artística baseada na autonomia e na criatividade infantil. Curiosamente, o texto “O desenho das crianças” marcou também a estreia de André Carneiro em um veículo de grande circulação nacional. Em maio de 1945, ele foi publicado também na revista literária Vamos Ler, do Rio de Janeiro, rendendo ao autor cinquenta cruzeiros — e inaugurando uma trajetória que uniria, para sempre, sua inquietação intelectual em defesa de uma arte livre e espontânea, desde a infância.

* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.