Histórias de Atibaia – Benedito Pires, o construtor da última morada

A matéria, além do assunto inusitado, transitava entre o fúnebre e o humorístico, daí meu interesse em resgatá-lo.

Márcio Zago

Sinto-me privilegiado por poder, com certa regularidade, folhear as antigas páginas do jornal O Atibaiense, esse verdadeiro relicário cultural que, há mais de um século, registra as histórias e acontecimentos da cidade. Nesse garimpo, não raras vezes, encontro pequenas pérolas que procuro enquadrar no campo cultural — afinal, é essa a razão de minha pesquisa. Mas, como a cultura é ampla e abarca múltiplas dimensões da vida, também cabe uma reportagem sobre um ancião que construía caixões de defunto. Refiro-me a uma matéria sobre o senhor Benedito Pires, o mais popular fabricante de urnas mortuárias daquele longínquo ano de 1946. A matéria, além do assunto inusitado, transitava entre o fúnebre e o humorístico, daí meu interesse em resgatá-lo. Esse interesse tornou-se ainda maior ao descobrir, há pouquíssimo tempo, que meu próprio pai quase seguiu esse ofício. Só não o fez porque minha irmã, ainda criança e apavorada com a ideia de ver nosso quintal cheio de caixões, ameaçou sair de casa, caso ele trocasse a profissão de restaurador de móveis pelo de fabricante da última morada dos homens. Na reportagem, depois de um preâmbulo descritivo da oficina e das tarefas que o senhor Benedito Pires realizava momentos antes da entrevista, o assunto caminhou para os fregueses que se utilizaram de seus serviços. Fregueses que, garanto,foram obrigados a recorrer a seus serviços contra a vontade. Entre eles estavam figuras ilustres e conhecidas da cidade como o Major Juvenal Alvim, Olegário Barreto, Joaquim Passos, Nho Quim das Pedras, entre tantos outros.O repórter então perguntou:
– Quantos caixões fornecem para Atibaia?
– De 30 a 40 por ano – diz o senhor Benedito Pires – São poucos, mas dou graças a Deus por isso, porque de outra forma bem poderia chegar a minha vez, que espero esteja bem longe…
A entrevista se estendeu ainda sobre a excessiva taxação de impostos cobrados pela Prefeitura e das dificuldades da profissão numa cidade onde o clima e a água não favoreciam o aumento da freguesia, arrematando com essa pérola do argumento de venda – uma peça digna do maior publicitário da atualidade:
“Diga pelo jornal que a crise de habitação é de todos conhecida, por isso que todos devem fazer com antecedência a encomenda de sua última casa e tratando-se da última morada na qual viveremos eternamente deve ela proporcionar o máximo conforto e bem estar ao morador, além de oferecer a segurança necessária para a tão longa permanência. Para esse conforto e essa segurança, tenho aqui boa madeira e ótimos pregos, além do que uma fazenda alva e macia que induz ao repouso e anima a solidão. Para a segurança do corpo nada melhor do que estas alças do mais sólido metal e estes cadeados que desafiam a ação do tempo ao intruso que se atrever ao força-los.
E com um riso de bom humor arrematou
– Os meus fregueses podem procurar-me aqui, me achando a disposição de todos, pobres e ricos, sem distinção de classes de fortuna, de cor e de religião… É só bater na porta e levar o seu caixão.”

* Márcio Zago é artista plástico, artista gráfico de formação autodidata, fundador do Instituto Garatuja e autor do livro “Expressão Gráfica da Criança nas Oficinas do Garatuja”.
Criador e curador da Semana André Carneiro.