A lei de alienação parental e o silenciamento das vítimas

Como uma lei para a proteção dos direitos das crianças é distorcida para blindar abusadores.

 

Por Anna Luiza Calixto

 

A Alienação Parental é, por lei, uma violência contra crianças e adolescentes. Em sua essência, ela trata de impedir que um dos responsáveis manipule a criança contra o outro — geralmente em contextos de separações litigiosas. Criada em 2010, a Lei da Alienação Parental (nº 12.318) tinha por objetivo primário justamente coibir abusos emocionais e preservar vínculos familiares. No entanto, passados mais de dez anos, acumulam-se evidências robustas de que essa mesma lei tem sido usada para inverter papéis e silenciar denúncias legítimas de abuso sexual contra crianças e adolescentes.

O que deveria ser uma ferramenta de proteção a esta população já vulnerável se tornou, em muitos casos, um mecanismo institucional de violência.

Mães que denunciam suspeitas de abuso sexual cometido pelos pais de seus filhos — quase sempre com relatos claros, laudos psicológicos ou sinais clínicos — são frequentemente acusadas de estarem promovendo “alienação parental”. O que se segue é o pior: a criança é obrigada a conviver com o suposto agressor, e a mãe, muitas vezes, perde a guarda, sofre ameaças judiciais, ou é acusada de mentir para se vingar do ex-parceiro. A vítima, nesse contexto, é duplamente violentada: primeiro pelo abusador, depois pelo próprio sistema de justiça.

E mais: diversos estudos, relatórios de defensorias públicas e denúncias de organizações da sociedade civil apontam que esse padrão atinge majoritariamente mulheres — mães solo, negras, empobrecidas — que enfrentam a solidão institucional diante de um Judiciário que ainda carrega vícios patriarcais, elitistas e excludentes. A justiça, que deveria ouvir a criança, frequentemente desqualifica seu relato, considera sua fala “contaminada pela mãe” e, em vez de investigar o abuso, passa a investigar quem denunciou.

Esse fenômeno não é raro. Ações de alienação parental aumentaram significativamente no país: em 2014, eram 401 processos registrados. Até outubro de 2023, o número saltou para 5.152 ações, segundo dados do CNJ. Essa realidade nos obriga a refletir: quem estamos protegendo quando usamos a lei dessa forma? A criança ou o agressor?

O princípio da proteção integral — previsto no ECA e na nossa Constituição Federal Cidadã — deveria balizar nossa conduta. Mas a prática mostra que, muitas vezes, o direito do pai de ver o filho se sobrepõe ao direito da criança de estar segura. Isso é grave e inadmissível.

A recente tentativa de revogação da Lei da Alienação Parental no Congresso, embora ainda inconclusiva, acendeu o debate público. Especialistas, movimentos feministas, juristas e mães organizadas vêm denunciando os efeitos perversos da lei quando aplicada sem escuta qualificada da criança. O Judiciário, em muitos casos, ignora a necessidade de escuta protegida, não considera o contexto da denúncia e aplica punições às mães com base em laudos superficiais ou opiniões técnicas enviesadas.

Não se trata de negar que alienação parental exista. Ela existe — e é grave quando de fato ocorre. Mas o que está em curso é algo mais profundo: a criminalização da maternidade protetiva, a inversão da lógica da proteção, a deslegitimação da palavra infantil.

Se uma criança denuncia um abuso, o mínimo que o Estado deve fazer é escutar com responsabilidade, proteger com urgência e investigar com seriedade. Nenhuma mãe deveria ser punida por acreditar no filho. Nenhuma criança deveria ser obrigada a conviver com quem a feriu.

Precisamos revisar, urgentemente, os recursos de uso da Lei de Alienação Parental. E mais do que isso: precisamos colocar o bem-estar da criança no centro das decisões judiciais, em vez de preservar aparências de uma “convivência saudável” a qualquer custo. Não há vínculo saudável onde há medo. Não há afeto onde há violência e dor.

Que a justiça brasileira ouça essas vozes enxergando-as como gente, como sujeitos de direitos. Porque toda criança é nossa criança.